A fome como razão de Estado

A atuação de Bolsonaro evidencia que o presidente miliciano não abandonou seus sonhos despóticos. A hecatombe sanitária, a catástrofe social e a escalada autoritária são faces de um mesmo projeto – o neoliberalismo extremado. Sem a ameaça da fome, os trabalhadores não arriscariam suas vidas. Sem o perigo de uma explosão social, não haveria a necessidade de uma situação de exceção. Há lógica, substrato de classe e projeto político nas ações de seu governo.

O nexo entre neoliberalismo sanitário, devastação do trabalho, insegurança alimentar e Estado autoritário é a quinta-essência da economia política do genocídio. Sua premissa fundamental é a ausência de medidas anticíclicas – orientação que obedece aos interesses do capital rentista que domina o Plano Real. Sem romper o regime de austeridade fiscal é impossível viabilizar, de maneira sustentável, o volume de transferência de renda necessário para que os trabalhadores possam fazer isolamento social.

A luta desesperada pela sobrevivência torna os trabalhadores particularmente vulneráveis à ofensiva do capital. Efeito inevitável da destruição inaudita que significa a transformação da economia brasileira numa grande feitoria moderna, o agravamento da crise social coloca na ordem do dia o conflito social, reforçando a tendência estrutural que empurra o padrão de dominação para um Estado abertamente ditatorial, pronto para suprimir a qualquer preço a contestação social.

Em 2020, apesar da eliminação de 8,4 milhões de postos de trabalho, que deixou cerca de um terço da força de trabalho desempregada, desalentada ou subutilizada, a crise social não se traduziu numa escalada da pobreza, e a explosão da crise social não foi às ruas.1 O impacto perverso do colapso do mercado de trabalho sobre a vida dos trabalhadores foi parcialmente mitigado pela política de transferência de renda votada pelo Congresso Nacional, muito a contragosto de Bolsonaro e de seu Ministro da Economia.

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) estima que, na ausência do Auxílio Emergencial, que injetou ao longo de nove meses uma renda equivalente a 4,3% do PIB, distribuída entre 68 milhões de pessoas, o aumento da pobreza extrema e da pobreza teria sido brutal. O estudo mostra que, se não tivesse havido o socorro do Estado, mais 5,3 milhões de brasileiros teriam entrado em situação de pobreza extrema, o que, entre 2019 e 2020, aumentaria de 5,5% a 8,0% a população nessa situação. E o número de pobres teria aumentado em 10,4 milhões, elevando-se de 19,2% a 24,1% da população.2

Nos primeiros meses de 2021, o fim do Auxílio Emergencial recolocou o espectro da fome nas casas de uma imensa parcela dos brasileiros. O problema foi agravado pelos efeitos perversos do total descontrole da pandemia sobre a economia e, como consequência, sobre o mercado de trabalho. O desemprego virá acompanhado de uma forte carestia. Os efeitos da especulação desenfreada com alimentos em escala global, potencializada pela expressiva desvalorização do Real, provocaram uma forte escalada no custo de vida. Segundo Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos feita pelo DIEESE, em fevereiro, o aumento anual do custo da cesta básica ficou em torno de 25% em 13 das 17 capitais pesquisadas – uma corrosão substancial no poder de compra dos trabalhadores.3

Ao contrário do que ocorreu ano passado, agora os trabalhadores ficarão praticamente desamparados. O novo Auxílio Emergencial enviado pelo governo Bolsonaro ao Congresso Nacional, na forma de uma Medida Provisória, fica muito aquém do que seria necessário para evitar uma acelerada deterioração das condições de vida da população. A redução dos benefícios para um valor entre R$ 150 e R$ 375 reais – muito menor que as parcelas do Auxílio Emergencial de 2020, que chegaram a alcançar R$ 1,2 mil – não permite a compra nem de uma cesta básica, cujo valor na cidade de São Paulo foi estimado em R$ 640.

Por sua magnitude irrisória, o Auxílio Emergencial de Bolsonaro de nada servirá como estímulo ao isolamento social. E nem foi pensado com tal finalidade. Ademais, por seu impacto irrisório sobre a demanda agregada, equivalente a apenas 0,4% do PIB, de nada adiantará para atenuar as tendências recessivas. A ninharia prevista no novo auxílio, concebido para durar quatro meses e atingir 45,6 milhões de pessoas, tem, na verdade, um objetivo rasteiro: estancar a acelerada rejeição ao governo Bolsonaro.

A perspectiva é sombria. O Brasil encontra-se em águas turvas, sem política sanitária para interromper a circulação do vírus, sem política anticíclica para enfrentar a maior crise econômica da história, sem política de renda para atenuar o impacto da crise social sobre a população, sem uma oposição articulada para conter os descalabros do presidente genocida e sem instituições para dar um basta à marcha trágica dos acontecimentos. Deixar para acertar as contas com o presidente miliciano em 2022, como a oposição dentro da ordem vem fazendo, é cumplicidade com o genocídio em curso.

A fome ronda as famílias brasileiras. Os trabalhadores só contam com sua própria força para enfrentá-la. As organizações comprometidas com o socialismo têm a obrigação moral e política de construir uma política para enfrentar a situação de emergência social. Como medida urgente, é preciso organizar a distribuição de cestas básicas e implementar cozinhas coletivas nos bairros populares para atender a população faminta. Paralelamente, é preciso lutar pela deposição de Bolsonaro e Mourão para que o país possa ter uma política de soberania sanitária, baseada no isolamento social, na segurança econômica dos trabalhadores, na produção em massa de vacinas e na imunização acelerada do conjunto da população. Como política estratégica, é vital romper com o Plano Real e conscientizar a população para a necessidade de mudanças radicais nas estruturas responsáveis pela perpetuação da segregação social e da dependência externa. Nada disso é possível sem colocar na ordem do dia a urgência de se ir além do capital.

Contrapoder, 22 de março de 2021.

Referências

  1. Para uma síntese da situação do mercado de trabalho em 2020, ver: https://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_continua/Trimestral/Quadro_Sintetico/2020/pnadc_202004_trimestre_quadroSintetico.pdf
  2. Ver CEPAL, Panorama Social de América Latina 2020. Santiago: CEPAL, jan, 2021. In: https://www.cepal.org/sites/default/files/publication/files/46687/S2100150_es.pdf
  3. Consultar DIEESE, Pesquisa da Cesta Básica de Alimentos – Fevereiro de 2021. In: https://www.dieese.org.br/analiseicv/2020/202002analiseicv.html

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