A administração da barbárie passa pela ocultação da gravidade da crise sanitária, econômica e social que abala a sociedade brasileira. Sem a percepção do sentido e das possibilidades inscritas no movimento histórico, os trabalhadores ficam condenados a aceitar a catástrofe como um fato consumado frente o qual só resta a resignação. Daí a mentira e a ocultação sistemática como razão de Estado.
A narrativa de que a epidemia de coronavírus é uma doença passageira de menor gravidade – uma “gripezinha” –, que seria logo resolvida com a imunização em massa da população, é uma inverdade. Com uma taxa de letalidade de 47,5 pessoas para cada 100 mil habitantes, a COVID-19 é a terceira doença que mais mata no Brasil.[1]
A verdade é que o coronavírus permanece um enigma e não há remédio comprovado para enfrentá-lo. A hipótese de que a contaminação de uma parcela da população geraria imunização de rebanho é, por enquanto, mera hipótese. Mas mesmo que se comprovasse verdadeira, tal estratégia teria um custo humano inaceitável, principalmente quando se leva em consideração que o Brasil já superou 100 mil mortes “oficiais” (muito mais de fato, considerando-se a elevada subnotificação), enquanto menos de 4% da população foi contaminada pelo coronavírus, segundo pesquisa da Universidade Federal de Pelotas – número muito abaixo do intervalo de 20 a 70% que é aventado pelos que supõem a possibilidade de imunização em massa.[2]
A possibilidade de uma solução mágica para a pandemia é muito remota. Há relativo consenso entre os epidemiologistas de que é pouco plausível que as vacinas em desenvolvimento, seis delas em estágio avançado, possam ser aprovadas, fabricadas e distribuídas para o conjunto da população antes do final de 2021. É o cenário de base entregue ao general de plantão no Ministério da Saúde, mas não o que orienta sua ação nem o que vem sendo martelado na cabeça da população.[3]
A ideia de que as dificuldades econômicas do país seriam problemas conjunturais, provocados pela pandemia de coronavírus e agravados pelos efeitos disruptivos da quarentena, ignora o fato de que a crise da economia brasileira é estrutural e foi potencializada pela crise econômica mundial – a maior recessão sincronizada de que se tem registro na história moderna.
Um estudo da CEPAL estima que em 2020 a economia mundial sofrerá uma contração da produção da ordem de 5,2%. Nos Estados Unidos, a queda do PIB será de 6,5% e na Zona do Euro de 8,7%. A Organização Mundial do Comércio prevê uma diminuição do comércio mundial de mercadorias de até 32%. Elo fraco do sistema capitalista, a América Latina será particularmente castigada. Estima-se que o PIB da região diminua 9,1%, levando o nível da renda per capita ao patamar de 2010.[4]
No Brasil, a recessão será brutal. A mesma CEPAL estima uma contração da produção de 9,2% em 2020. Os efeitos recessivos da crise são potencializados não só pela elevada vulnerabilidade da economia brasileira às vicissitudes da economia internacional, como também pela inexistência de uma política econômica anticíclica e pelo total descontrole da epidemia. Com o novo mergulho recessivo, a renda per capita do brasileiro deve regredir ao patamar de 2006, ficando quase 20% abaixo do pico atingido em 2013.
A expectativa de que a crise seja de curta duração não encontra nenhum respaldo nas evidências históricas. Estudos do Banco Mundial e do FMI – organizações insuspeitas de ter qualquer viés crítico – alertam que a crise da economia mundial será de longa duração. A desorganização do sistema produtivo, a destruição de empresas, a drástica redução do poder de compra e da propensão a consumir das famílias, os efeitos negativos da crise fiscal sobre os gastos públicos, a depressão do comércio internacional, a escalada das rivalidades nacionais e os efeitos negativos da incerteza estrutural sobre as expectativas dos empresários solapam qualquer possibilidade de uma rápida recomposição da economia mundial.[5]
É um completo disparate imaginar que a economia brasileira, estagnada há seis anos, consiga driblar a extraordinária adversidade do contexto histórico e engatar um ciclo de crescimento em plena depressão global. No entanto, é o que se escreve e se ouve nos meios de comunicação, quando se insiste que, se as reformas liberais avançarem, o crescimento e o emprego voltarão. Revelar a gravidade da crise que desarticula o sistema econômico nacional e que nos condena a uma estagnação estrutural seria subversivo, pois ensejaria o debate sobre o que colocar no lugar do modelo neoliberal.
A suposição de que o impacto da crise econômica sobre a vida dos brasileiros seria passageiro, diagnóstico implícito na medida de Auxílio Emergencial votada pelo Congresso Nacional, ignora os efeitos devastadores da depressão econômica sobre o mercado de trabalho. Dados do IBGE referentes ao segundo trimestre de 2020 apontam para uma escalada do desemprego, da pobreza e da desigualdade social.
O IBGE (PNAD Contínua) revela que, em apenas três meses, a força de trabalho ocupada sofreu uma contração de quase 9 milhões de postos em relação ao trimestre anterior. O aumento da taxa de desemprego para 13,3% – a maior da série histórica – camufla a magnitude do problema. Se o nível de participação da força de trabalho fosse mantido no mesmo patamar do segundo trimestre de 2019, a taxa de desemprego seria superior a 20%. Com a escalada do número de trabalhadores desocupados, subocupados e desalentados, aproximadamente 1/3 da força de trabalho, quase 32 milhões de pessoas, encontra-se numa situação de desemprego estrutural, absolutamente marginalizadas do mercado de trabalho.[6]
A possibilidade de que a situação se deteriore ainda mais fica evidente quando se considera que, em maio, 19 milhões de pessoas foram afastadas do trabalho (9,7 milhões sem nenhuma remuneração). Dos que continuaram trabalhando, 30 milhões sofreram alguma redução no rendimento – 36% dos ocupados. Como seria de esperar, a crise penalizou de maneira mais intensa os setores mais frágeis da classe trabalhadora, trabalhadores menos qualificados, informais, negros e mulheres.[7]
A escalada do desemprego, do arrocho salarial, da pobreza e da desigualdade social acirra a crise social. Por enquanto, as tensões e os conflitos daí decorrentes foram mitigados pela transferência de renda aos trabalhadores, cujo impacto, segundo avaliação do IPEA, compensou em cerca de 45% a contração da massa de rendimento dos trabalhadores provocada pela crise do coronavírus.[8] Ocultar a dimensão da crise social é funcional apenas àqueles que, contra tudo e contra todos, defendem com unhas e dentes a preservação do status quo.
A disputa pela interpretação da crise e da forma de resolvê-la é uma importante frente de batalha da luta de classes. Minimizar os riscos do coronavírus, desdenhar sua letalidade e subestimar as dificuldades da imunização coletiva são elementos estratégicos da política sanitária genocida da burguesia brasileira. Atribuir a crise econômica à política de quarentena e insistir na possibilidade de uma solução liberal para uma estagnação estrutural da economia brasileira é um discurso que só serve para perpetuar a ideia de que não há alternativa ao status quo. Ocultar a gravidade da crise social dantesca que germina nas entranhas da sociedade brasileira e insistir em administrá-la com medidas meramente assistencialistas são elementos estratégicos da política de mera administração da barbárie.
Na ausência de um programa político independente, as revoltas populares – que serão cada vez mais frequentes e selvagens – não serão capazes de abrir novos horizontes para os desesperados.
Antes de se cotovelarem com os partidos da ordem na disputa de “programas de governo” com soluções institucionais que nunca se realizarão, como faz a esquerda da ordem, os socialistas devem aproveitar todas as oportunidades para expor à população a gravidade do momento histórico e denunciar a absoluta impossibilidade de manter tudo como está. O momento é gravíssimo. É hora de lançar candidaturas antissistema para denunciar as eleições de cartas marcadas que legitimam o Estado neoliberal, despertar a consciência da classe trabalhadora e defender a urgência da revolução brasileira.
Contrapoder, 11 de agosto de 2020.
[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-08/covid-19-brasil-tem-296-milhoes-de-casos-e-995-mil-mortes
[2] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/07/02/numero-de-infectados-por-coronavirus-no-brasil-e-ate-7-vezes-maior-do-que-dado-oficial-revela-estudo.ghtml
[3] ministro-da-saude-foi-avisado-de-que-efeitos-da-covid-19-durariam-ate-2-anos.htm
[4] Ver, S2000471_es.pdf
[5] World Bank. 2020. Global Economic Prospects, June 2020. Washington, DC: World Bank; e IMF, World Economic Outlook Update, June, 2020.
[6] pnadc_202006_quadroSintetico.pdf
[7]https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2020/boletimEmpregoEmPauta15.html
[8]https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/200702_cc_48_mercado_de_trabalho.pdf; e IFI, RAF42_JUL2020.pdf
Td para concentrar, ainda mais aceleradamente, a riqueza e a renda, nas mãos de banqueiros, rentistas e políticos.