A tarefa revolucionária e a consciência racial

Foto original: Marco Favero

Passamos por mais um dia 20 de novembro e ainda é necessário traçar um caminho para a união da luta popular. Para buscarmos sentido em nossa ação própria, precisamos responder a questões que há muito tempo estão postas pela realidade. Como vamos construir uma nova sociedade se a maior parte dela, quando sobrevive, não tem o mínimo de dignidade? Como vamos restituir o poder popular se recorrentemente se nega a materialidade do racismo em nossas relações?

João Alberto Silveira Freitas, mas não somente ele, lembra que nossa tarefa é urgente. O que provoca em nós ver um homem negro sendo assassinado covardemente em um supermercado? A resposta é mais imediata para alguns. Nós negros, além de sentirmos a dor de saber que uma pessoa como nós foi morta covardemente, registramos mais um trauma que nos dirá como nos comportar e nos proteger nesses espaços pelo resto da vida. Uma chaga torna a se abrir em nossas peles negras, retomando as dores que nunca cessaram desde o momento em que o primeiro africano, a primeira africana, pisaram nestas terras.

Mas, como segue a luta? Qual é, por fim, a tarefa que o concreto escancara em nossos rostos? Há tempos, a realidade é um chamado inevitável à radicalidade. Os africanos que aqui foram escravizados resistiram ao lado dos povos originários. Essa é nossa ancestralidade! É hora de resgatá-la, dando sentido a nossa luta incessante pela emancipação humana. É responsabilidade coletiva construir a oportunidade histórica para que a insurgência se materialize em nossas mentes e corações.

A radicalidade à qual nos referimos não é outra senão a transformação integral de nossa conduta. Se o racismo é estrutural, se a morte de negros e negras é mais comum do que algumas manchetes fazem parecer, se estamos à beira de uma hecatombe social e econômica, por que repetimos as mesmas rezas, usamos os mesmos olhos e mantemos a mesma prática que até hoje nos tem impedido de avançar definitivamente?

Paradoxalmente, a radicalidade que defendemos é nada mais do que uma volta necessária ao concreto. O Brasil não é um país branco, nunca foi e nunca será. A identidade racial de nosso país foi construída a partir da concepção de que a miscigenação – feita a partir do estupro de mulheres indígenas e negras como arma de dominação branca – tornou possível a formação de uma identidade nacional que aparentemente “aceita” os diferentes. Mas manteve uma supremacia branca, como um espelho distorcido vindo da Europa nas dinâmicas de imigração para o branqueamento. A radicalidade está em abrir mão dessa supremacia, na tarefa inadiável de negá-la.

Nessa realidade, a busca por uma identidade negra pode nos levar a caminhos escusos, como, por exemplo, encontrar a negritude apenas entre os de pele escura. A violência da escravidão, do racismo que estrutura o capitalismo, renova-se naqueles que trazem em seu corpo as marcas dos povos que foram subjugados para que o capitalismo pudesse imperar mundialmente. Mas não nos enganemos, aqueles que agem a mando do capital não possuem a menor dúvida. Assim como os traficantes de escravos, os senhores de engenho e seus capitães do mato, eles continuam com suas armas apontadas para a nossa cara.

Por outro lado, o pacto narcísico da branquitude ainda se coloca como uma amarra para aqueles dispostos a lutar contra as mazelas da exploração capitalista, mas relutantes em entender que a realidade é dialética. 

Não é a contestação da hierarquia racial que divide a classe, mas a incapacidade de perceber a centralidade do combate ao racismo na luta de classes. E, em razão de ser complexa a compreensão do racismo como instrumento de dominação, não se veem como próprias as lutas contra a opressão provocada por ele, e isso impede a unidade das lutas. “Solidariedade à luta negra”, dizem. Não se trata de solidariedade quando a luta é a mesma. O racismo é condição essencial ao funcionamento do capitalismo. Não existe capitalismo sem racismo, e é passada a hora de que o “estamos juntos na luta contra o racismo” seja algo mais que um simples jargão. 

Como parte do processo de formação do capitalismo, o escravismo e a colonização foram os veículos da noção de supremacia racial correspondente ao homem branco europeu. Não foram movidos apenas pelo direito divino e munidos da noção de serem o ápice da humanidade que os colonizadores cruzaram os mares. Eles forjaram novas relações de produção e reprodução da vida, baseadas primariamente na hierarquia racial. Eles criaram a modernidade, que com o seu Direito, sua cosmovisão, seu modo de produção e sua democracia nunca abriu mão da dominação e exploração como cerne de sua sociabilidade.

É por isso que resistir para garantir uma democracia assassina e racista é criminoso. Sua base de sustentação é o encarceramento em massa, devastação de nossas matas, genocídio indígena e negro. Tudo se faz em nome da propriedade privada. É essa realidade que garante a continuidade da violência e do estupro de mulheres que, ao se levantarem, ainda são questionadas pela agressão brutal que sofreram e ainda mais atacadas.

Passamos por um período em que o capital impõe uma corrida pela devastação da vida no planeta. A nossa conduta, o nosso programa, a nossa ação devem ser balizados no entendimento profundo das contradições reais que compõem a particularidade brasileira dentro deste sistema mundial. A colonização no Brasil construiu, na figura racial cabocla, sua principal arma de destruição. A luta de classes em nosso país nasce da resistência à escravização e é, ainda hoje, a mesma luta CABOCLA, hoje protagonizada pelos escravizados e escravizadas modernos.

Contrapoder, 23 de novembro de 2020

Um comentário sobre “A tarefa revolucionária e a consciência racial

  • 17 de fevereiro de 2021 at 7:33 pm
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    Artigo para reflexão e discussão coletiva com vistas ao trabalho de mobilização política e conscientização ideológica

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