Acirra-se a crise nacional

O mês de março começa com a pandemia alcançando uma gravidade ainda não vista. A combinação entre genocídio como política de governo, vacinação a conta-gotas, imperativo econômico sobre a saúde e a vida, medidas de isolamento social tardias e ineficazes, colapso do sistema de saúde e propagação de novas variantes torna o país o centro mundial da pandemia. Hoje o Brasil já é responsável por 43% do aumento dos novos casos em todo o mundo, ou seja, de cada dez novos contaminados, quatro estão no nosso país.1 A aceleração da transmissão do vírus semana após semana no último mês, com a disseminação das novas variantes pelo território nacional e o aumento sucessivo no número de casos, indica que a pandemia fugiu do controle!

Apesar de o imperativo econômico se sobrepor à defesa da vida e do “salve-se quem puder” imposto aos trabalhadores e pequenas empresas, a economia terminou o ano na maior recessão em 30 anos, fechando a pior década da história em crescimento do PIB2, com inflação em aceleração, principalmente para os bens de consumo popular, e queda na renda dos trabalhadores. A expectativa de normalização das atividades econômicas neste novo ano, alimentada pelo governo e pelo capital, esvaiu-se rapidamente com o recrudescimento inaudito da pandemia. O ano de 2021 começa sem que a tendência recessiva tenha sido superada, com desemprego nas alturas, elevação dos juros e redução dos investimentos. O fim do auxílio emergencial deve contrair ainda mais o consumo popular. O grande capital ganhou dinheiro e concentrou riqueza como nunca durante toda a pandemia, mas na base de uma piora acentuada das condições econômicas, o que exige uma radicalização do rentismo e do avanço sobre os bens públicos com privatizações, eliminação de direitos sociais e trabalhistas e pilhagem de terras e recursos naturais.

A vitória dos candidatos governistas na disputa para as presidências da Câmara e do Senado, com o aval do bloco no poder, não só afastou temporariamente a possibilidade de impeachment, como também criou condições mais favoráveis para a aprovação das pautas do governo no Congresso. Esta inegável vitória política de Bolsonaro o fez abandonar a postura de “moderação” adotada nos últimos meses e retomar com virulência a tática de mobilização das bases bolsonaristas por meio da agitação, da ameaça e da pregação golpista. As bravatas de Daniel Silveira contra o STF, as confissões golpistas do general Villas Boas, seguidas da humilhação pública de Fachin, da intervenção na Petrobrás, da ação da PGR contra a Lava Jato, do decreto das armas, das manobras jurídicas para inocentar o clã presidencial dos crimes pelos quais são acusados e da pregação contra a vacina, contra o uso de máscara, contra as ações sanitárias promovidas por governadores e contra a própria democracia, além da criminalização de acadêmicos e da prisão de André Constantine num ato contra a militarização da guarda metropolitana do Rio de Janeiro, deixam claro que o bolsonarismo voltou a “esticar a corda”.

As instituições burguesas derretem a olhos vistos! As Forças Armadas abrem mão do monopólio da força em favor das milícias e grupos armados bolsonaristas. Perde-se o controle sobre o acesso a armas e munições. O poder judiciário não consegue preservar minimamente sua função ideológica de legitimação da cidadania burguesa como guardião da igualdade jurídica formal, pois corrompido de alto a baixo pela partidarização, pelo casuísmo, pelos privilégios e pela judicialização da política. O sistema federativo é contestado diariamente pelo presidente quando este ameaça não conceder auxílio emergencial aos estados que decretarem lockdown contra a pandemia, nega autonomia para compra de vacinas por governadores e prefeitos e interfe no ICMS estadual. 

As respostas às crises econômica, social, política e sanitária dadas pelas burguesias, pelo governo, pelas instituições e pelos agentes políticos, à direita e à esquerda, não passam de “gambiarras”, remendos que nada resolvem, explicitando a gravidade da crise de hegemonia que abala a vida nacional. À crise econômica e social, o governo retarda o quanto pode a concessão de versão ainda mais limitada em valores e abrangência do auxílio emergencial e simula o controle dos preços públicos, ao mesmo tempo em que, obedecendo aos ditames do grande capital, propõe mais reformas neoliberais e manutenção do teto de gastos. Ao descontrole da pandemia e à política genocida adotada pelo governo, o grande capital reage propondo a privatização da vacinação, para imunizar seus trabalhadores e permitir o funcionamento de suas empresas, enquanto um conhecido magnata, dos que mais enriqueceram com a pandemia, sugere que os pobres vejam na crise e no desespero uma oportunidade de “ousar” e “crescer” profissionalmente. A grande mídia não-bolsonarista combate o obscurantismo e a ameaça autoritária, mas não abre mão da pauta econômica neoliberal extremada de Guedes, enquanto a classe média indignada com a falta de leitos nos hospitais privados se limita a bater panela contra Bolsonaro nas janelas e varandas. 

A bagunça no andar de cima é total. Ao invés de mobilizarem suas bancadas no Congresso para o impeachment, governadores e prefeitos preferem apelar ao governo federal para que este agilize a compra de vacinas. Limitam-se a adotar medidas de isolamento social inócuas – parciais, de curta validade e desrespeitadas na cara dura por lojistas e fabricantes de todos os tamanhos.  O STF apoia a queima da Lava Jato pela PGR, mas não pune os crimes cometidos por juízes, procuradores e delegados na operação, nem reverte as decisões tomadas com base no lawfare mais descarado, ao mesmo tempo em que legaliza os ataques neoliberais à Constituição. Enquanto isso, a esquerda da ordem aposta todas as fichas na luta institucional e nas eleições de 2022. A corrida presidencial instaura uma disputa fratricida entre candidaturas concorrentes, mandando às calendas gregas a possibilidade de uma chapa unificada.

A sociedade brasileira vive uma profunda crise de hegemonia, no seio da qual ocorre um processo de mudança no padrão de acumulação capitalista e na própria configuração da autocracia burguesa. Constrói-se um padrão de acumulação que radicaliza a dependência externa, a primarização da economia e a pilhagem dos bens públicos, enquanto se intensificam o arrocho salarial e a precarização do mercado de trabalho, lançando a maior parte da classe trabalhadora na miséria e na insegurança. A chamada “Nova República” dá lugar a um processo de restrição progressiva da legalidade democrática que fortalece a fascistização do Estado e da própria vida social, desestabilizando o regime político e corroendo a credibilidade das instituições. 

Ao mesmo tempo em que requer o fechamento do regime político e a restrição do espaço político dos trabalhadores, a construção do novo padrão de acumulação capitalista necessita da legitimidade política oriunda do processo eleitoral e da sobrevivência de instrumentos de cooptação e de mediação política do conflito social. Daí a instabilidade permanente e as “gambiarras”, que tornam a vida social um inferno, mas que também solapam as próprias bases da dominação burguesa. Nesta situação, só os trabalhadores podem desatar o nó cego da dominação burguesa no país, não para simplesmente restaurar a democracia limitada de 1988 e recuperar os direitos perdidos, mas para ir além, abolindo a autocracia burguesa e colocando a perspectiva socialista na ordem do dia.

Contrapoder, 09 de março de 2021

Referências

  1. Schelp: Brasil representa 43% na alta de infectados por covid-19 no mundo, ver em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/03/04/schelp-brasil-representa-43-na-alta-de-infectados-por-covid-19-no-mundo.htm
  2. PIB cai 4,1% em 2020 e fecha o ano em R$ 7,4 trilhões, ver em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/30165-pib-cai-4-1-em-2020-e-fecha-o-ano-em-r-7-4-trilhoes e PIB: Brasil termina 2020 com segunda década perdida — e a pior desde 1900, ver em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/03/03/pib-brasil-termina-2020-com-segunda-decada-perdida-e-a-pior-desde-1900

4 comentários sobre “Acirra-se a crise nacional

  • 12 de março de 2021 at 3:35 am
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    O Brasil não é responsável por 43% dos casos novos. O texto do UoL fala em 43% da alta. Hoje, foram 470.919 casos novos no mundo e 78.297 no Brasil.

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    • 12 de março de 2021 at 2:07 pm
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      Nelson! Você está certíssimo. foi um erro de escrita na verdade, mas já corrrigido.

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  • 12 de março de 2021 at 7:50 pm
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    Considero os textos do Contrapoder sempre muito interessantes de ler e sobre os quais refletir. Mas com frequencia os concluo com a sensação de “ok, terrível, mas e agora? o que se faz concretamente? o que cada leitor deve ter como tarefa nesse momento?” e me vejo ainda sem as respostas.

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    • 14 de março de 2021 at 8:23 pm
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      Super entendo, mas isso é uma resposta que precisa ser feita da forma mais coletiva possivel! para onde vamos, é sempre vamos… temos que achar espaços e criar espaços para avançarmos juntos.

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