O contraste entre a estabilidade da inflação oficial e a carestia dos alimentos – a inflação dos pobres – evidencia o caráter particularmente perverso e antissocial do Plano Real. Enquanto a recessão puxa o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – o IPCA – para baixo, impedindo que a maxidesvalorização cambial de cerca de 30% em 2020 seja repassada ao nível geral dos preços, a ausência de uma política de soberania alimentar leva o valor da cesta básica de alimentos às alturas. O que interessa ao capital – a confiança na moeda como unidade de cálculo econômico e seu papel como reserva de valor – é preservado a qualquer custo. O que é essencial ao trabalho – o poder de compra do salário – é sistematicamente negligenciado.
A carestia dos alimentos é confirmada pela pesquisa do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos – DIEESE. Nos doze meses que se encerraram em agosto, o aumento médio nos preços da cesta básica de uma família de quatro pessoas nas 17 capitais pesquisadas foi superior a 15%, e em sete cidades a elevação ficou em torno de 20%. Tal cifra contrasta com o índice oficial de inflação em doze meses de 2,4%. A tendência é que o IPCA feche 2020 em torno de 2% e que o custo de vida aumente ainda mais.
Atribuir a responsabilidade pela disparada nos preços dos alimentos à lei da oferta e da procura é um escárnio. O caso do arroz, que ganhou as manchetes dos grandes meios de comunicação, é emblemático. A elevação de 20% em seu preço de venda ao consumidor desde o início do ano não pode ser atribuída nem à quebra de safra nem ao aumento do consumo interno. A produção de 2019/2020 foi recorde. E, por mais que a quarentena possa ter mudado os hábitos alimentares, não houve, nem teria como ter ocorrido, uma explosão na demanda de arroz.
Mesmo considerando o significativo impacto do Auxílio Emergencial de R$ 600, que acabou alcançando mais de 65 milhões de pessoas, a capacidade de consumo das famílias diminuiu de maneira expressiva. Pesquisa do IPEA mostra que, em maio, o Auxílio Emergencial compensou apenas 45% da contração da massa salarial provocada pela crise econômica. Em junho, o IPEA estima que a renda efetiva das famílias (que inclui as transferências emergenciais) encontrava-se 11% abaixo da renda habitual.1
Na realidade, a escassez relativa de arroz no mercado interno foi gerada pelo deslocamento da oferta para o mercado internacional, muito mais rentável depois da forte desvalorização do Real em relação ao Dólar, e foi agravada pela retenção especulativa de estoques na expectativa de ganhos ainda maiores.2 Não deixa de ser irônico que durante o governo Bolsonaro o arroz que falta na mesa dos brasileiros esteja abastecendo os pratos de venezuelanos e cubanos – países que lideram o aumento das compras externas, após a decisão do governo chinês de diminuir as exportações e aumentar seus estoques reguladores.3
Por mais que Bolsonaro procure tirar o corpo fora, como, aliás, é de seu feitio, a responsabilidade do governo federal pela disparada nos preços de alimentos é direta. A aprovação de um Plano de Safra voltado para o agronegócio não estimulou o aumento da produção de alimentos para os brasileiros. O desmonte da Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB – deixou o Estado sem estoques reguladores para intervir nos mercados. O veto ao DL 735 de 2020 aprovado pelo Congresso Nacional em junho, que criava mecanismos de apoio emergencial à pequena agricultura familiar, principal responsável pela produção de alimentos, não permitiu que o equívoco do Plano de Safra fosse atenuado. A fé cega no poder regulador do mercado deixou a dolarização dos preços de alimentos da cesta básica correr solta, sem que se tomasse nenhuma medida de proteção da economia popular.
Mas seria um exagero jogar toda a culpa pela escalada do custo da cesta básica nas costas do governo Bolsonaro. A renúncia à soberania alimentar é uma decisão estratégica que vem de longa data. A opção preferencial pelo livre mercado e pelo agronegócio globalizado remonta à política de liberalização iniciada por Collor de Mello, consolidada por Fernando Henrique Cardoso com a promulgação do Plano Real e aprofundada por todos os governos que o sucederam, sem exceção.
Ao reforçar o elo estratégico entre latifúndio, grandes corporações da alimentação e mercado mundial, o padrão de acumulação liberal-periférico decretou a sentença de morte da pequena agricultura familiar, principal responsável pelo abastecimento dos produtos que compõem a cesta básica dos trabalhadores, deixando a produção de alimentos à mercê da especulação global. Nessas circunstâncias, pedir patriotismo aos donos de supermercados é uma piada. O capital só bate continência para a taxa de lucro.
A situação objetiva da classe trabalhadora brasileira é desesperadora. A tirania do mercado provoca: genocídio sanitário, desemprego em massa, retirada de direitos sociais, arrocho salarial, desmantelamento dos serviços públicos, carestia de alimentos, recrudescimento da pobreza, escalada da desigualdade social e da concentração fundiária, devastação da floresta, a ferro e fogo, pela grilagem generalizada de terras. Se não houver um basta, a tendência é que tudo piore.
Por dentro da ordem não há a menor possibilidade de reverter a ofensiva implacável do capital contra o trabalho. No Brasil, capital e Estado atuam de mãos dadas em uníssono para rebaixar sistematicamente o nível tradicional de vida dos trabalhadores. Não há esperança de um futuro melhor sem grandes transformações que coloquem em questão as estruturas e a institucionalidade que sustentam o modelo econômico brasileiro. Organizar a contraofensiva do trabalho é o único meio de barrar a barbárie.
Contrapoder, 14 de setembro de 2020
1 – Ver: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/200724_cc48_mt_final.pdf; e https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/200702_cc_48_mercado_de_trabalho.pdf, respectivamente. Investigação da FGV corrobora o impacto devastador da crise econômica sobre o orçamento das famílias, constatando que, no primeiro trimestre completo da pandemia (abril-junho), a renda individual do trabalho sofreu uma redução de 20% em relação ao trimestre anterior. Na metade mais pobre dos trabalhadores, a contração foi ainda maior – 27,9%. https://www.cps.fgv.br/cps/bd/docs/Covid&Trabalho-Marcelo_Neri-FGV_Social.pdf
2 – Entre janeiro e agosto de 2020, o Brasil duplicou as exportações de arroz, destinando ao mercado externo cerca de 17% da produção nacional.
3 – De acordo com a COMEX STAT do Ministério da Economia, entre janeiro e agosto de 2020, as exportações de arroz aumentaram 81,4% em relação ao mesmo período do ano anterior. A Venezuela, com 20% das compras, é o principal destino, seguido de Perú, Senegal, Costa Rica e Cuba.