Barrar o avanço da direita

Quem imaginava deter a ofensiva do capital contra o trabalho única e exclusivamente pela via eleitoral levou uma invertida. O primeiro turno da eleição municipal de 2020 transcorreu sob controle absoluto da agenda liberal.1 Pautado pelo “novo normal”, que naturaliza a barbárie da crise sanitária e seus reflexos econômicos e sociais, o eleitorado brasileiro deslocou-se mais à direita. 

No esvaziamento sistemático das mobilizações populares de resistência aos ataques da burguesia e na ausência de um projeto político alternativo, baseado na intervenção popular, a solução autoritária para a crise política que se arrasta desde as Jornadas de Junho de 2013 – quando a rebelião da juventude colocou em xeque a “paz social” – continuou avançando por dentro e por fora da institucionalidade carcomida da Constituição de 1988.

Tendo conquistado praticamente 60% dos votos, proporção semelhante à obtida quatro anos atrás, os partidos que compõem a direita e centro-direita – lobos em pele de cordeiro – conseguiram ampliar seu controle sobre os executivos e legislativos municipais. Dentro deste bloco, MDB e PSDB perderam terreno em favor dos partidos ainda mais identificados com as pautas conservadoras e autoritárias – DEM e Centrão –, não à toa as mesmas forças que deram sustentação político-parlamentar à ditadura militar.

Em contrapartida, a força eleitoral da esquerda e do centro-esquerda da ordem diminuiu de um quarto para um quinto do eleitorado em relação a 2016. PT, PCdoB e PSOL permaneceram estagnados em torno de 10% dos votos nacionais. O espaço perdido pelo PT e PCdoB foi em parte ocupado pelo PSOL. O centro-esquerda – PDT, PSB E REDE – perdeu um terço dos votos.

Ainda que Bolsonaro tenha sofrido inequívoco revés em praticamente todas as regiões do país (e muito notadamente em São Paulo e Rio de Janeiro), a votação de candidatos a vereadores da ultradireita – PSL, Republicanos, PSC, Patriotas e PRTB – dobrou, ultrapassando a da esquerda da ordem e chegando nacionalmente a quase 13% dos votos válidos.

Como esperado, considerando-se as regras eleitorais que vetam aos partidos sem representação parlamentar acesso à propaganda gratuita e aos fundos públicos, a expressão eleitoral da esquerda contra a ordem – PSTU, PCB e UP – foi reduzida a zero. Banir definitivamente a esquerda revolucionária do debate público era um dos objetivos da reforma eleitoral de 2017.

À expressiva vitória eleitoral dos agentes políticos que representam o espectro mais reacionário da burguesia, soma-se sua acachapante vitória ideológica. Ao desvincular a eleição da luta de classes, o debate eleitoral foi reduzido à escolha de um gerente para a cidade. A campanha eleitoral transcorreu como se o Brasil não estivesse vivendo uma crise civilizatória dantesca.

Não houve uma contraposição de projetos políticos qualitativamente diferentes. Com poucas e honrosas exceções, os candidatos sujeitaram-se à banalidade da política do espetáculo, ao identitarismo pós-moderno descolado da luta de classes ou pura e simplesmente ao clientelismo deslavado que marca a tradição política brasileira.

Ainda que a vitória eleitoral da direita da ordem tenha dado fôlego ao esforço de encontrar uma solução autoritária para a crise política por dentro das estruturas falidas da Nova República, em contraposição a uma solução por fora da ordem, abertamente ditatorial como prega a ultradireita, seria um grave equívoco imaginar que a vida política nacional tenha sido estabilizada.

O aumento da abstenção e dos votos nulos e brancos, que alcançaram quase um terço do eleitorado nacional (e nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, cerca de 40%), o expressivo avanço de uma direita abertamente antidemocrática e a elevada taxa de renovação dos mandatos de vereador são sintomas inequívocos de uma gravíssima crise de legitimidade que corrói irremediavelmente a credibilidade das instituições fundadas na Nova República. 

Em poucos dias, a população será chamada novamente às urnas para decidir quem será o prefeito em 57 cidades com mais de 200 mil eleitores, 18 delas capitais de estado. O balanço final do pleito de 2020 ficará, então, mais claro. Em algumas dessas cidades, a disputa ficará polarizada entre forças reacionárias, que flertam, velada ou abertamente, com a necessidade de uma solução autoritária – por dentro ou contra a ordem – e forças historicamente comprometidas com a defesa do Estado de direito.

Nessas situações, como os casos notórios de Belém e São Paulo, onde candidaturas da frente de esquerda, lideradas pelo PSOL, enfrentam lideranças envergonhadas e desavergonhadas da direita autoritária, não há como hesitar. Sem alimentar nenhuma ilusão em relação aos limites de candidaturas que se circunscrevem aos parâmetros da ordem e sem iludir os trabalhadores com promessas que nunca se realizarão, os socialistas devem apoiar com toda sua energia a mobilização espontânea da juventude trabalhadora que se opõe às forças reacionárias. Fomentar uma revolta eleitoral contra os que atacam dia e noite os direitos e as liberdades civis dos trabalhadores é a tarefa imediata. No segundo turno, votar em Edmilson em Belém e em Boulos em São Paulo é o caminho para barrar o avanço do bolsonarismo e do dorismo – as duas faces do autoritarismo que ronda a sociedade brasileira.

Contrapoder, 20 de novembro de 2020

Referências

  1. https://contrapoder.net/editorial/o-debate-interditado/

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