A burguesia oculta o impacto devastador da crise econômica sobre a situação da classe trabalhadora e seus reflexos sobre a luta de classes. A obsessão com as flutuações nas cotações das bolsas de valores e moedas internacionais contrasta com o caráter esporádico e fragmentado das informações sobre a crise social e o conflito social. O que interessa ao capital é divulgado, o que constitui uma ameaça, escondido.
Mesmo assim, a necessidade de monitorar o pulso da luta de classes obriga a burguesia a acompanhar cuidadosamente a evolução das condições sociais da população. Observar o mercado de trabalho, a pobreza e a fome é um trabalho precípuo dos organismos internacionais. O balanço que eles fazem dos efeitos da crise econômica do coronavírus sobre as classes subalternas é sombrio.
A Organização Internacional do Trabalho estima que, no segundo trimestre de 2020, a economia mundial tenha reduzido em 17% o número de horas trabalhadas em relação ao último trimestre de 2019, o equivalente à perda de 495 milhões de empregos, quase metade deles em países de renda média e baixa. A contração dos empregos veio acompanhada de forte arrocho salarial entre os empregados. A OIT calcula que, nesse período, a renda do trabalho foi reduzida em cerca de 11% em relação ao último trimestre de 2019. O cenário pessimista – o mais provável, considerando-se a virulência da segunda onda de coronavírus na Europa – é que a ligeira recuperação do emprego seja revertida no quarto trimestre e termine 2020 18% abaixo do ano anterior. O mesmo deve acontecer com a remuneração do trabalho. A América Latina é a região comparativamente mais penalizada. 1
O colapso do mercado de trabalho provocou uma escalada da pobreza. O Banco Mundial prevê que, em 2020, o número de pessoas em situação de pobreza extrema, isto é, ganhando menos de US$ 1,90 por dia, aumentará entre 88 e 115 milhões. É o pior resultado em trinta anos, colocando o patamar da pobreza no mesmo nível de cinco anos atrás – em torno de 9% e 9,5% da população mundial. O estudo calcula que o número de pobres, pessoas que ganham menos de US$ 5,50 por dia, deve aumentar entre 172 e 226 milhões, levando o total de pobres no planeta à inacreditável magnitude de 3,4 bilhões de pessoas – praticamente a metade da população mundial. 2
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura – FAO – adverte que a crise do coronavírus pode provocar uma pandemia de fome sem precedentes. A expectativa é que, em 2020, entre 83 e 132 milhões de pessoas entrarão para a massa da população cronicamente subnutrida, levando o número de famélicos da terra à casa de 770 a 822 milhões de seres humanos – cerca de 10% da população mundial. O estudo da FAO adverte explicitamente para a urgência de medidas paliativas emergenciais para que a crise social não se converta em crise política. 3
A preocupação com a possibilidade de insurreições contra a ordem não é despropositada. As classes subalternas não estão passivas e não aceitam docilmente serem conduzidas para o abate. A lista de conflitos, protestos, manifestações e rebeliões do último ano seria interminável. Quatro deles são emblemáticos da agenda radical que mobilizou as classes exploradas nos últimos doze meses. O levante dos indígenas equatorianos contra o ajuste fiscal imposto pelo FMI obrigou o governo ultraneoliberal de Lenin Moreno a recuar na implementação de medidas que dizia serem inevitáveis. A rebelião da juventude chilena foi além e colocou em questão a constituição que avaliza o modelo econômico e político chileno instalado pela ditadura neoliberal de Pinochet e institucionalizado pelos governos “democráticos” que o seguiram. A oligarquia política foi obrigada a aceitar a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. No Líbano, os protestos populares contra os desmandos da oligarquia financeira derrubaram dois primeiros-ministros, pondo em xeque o acordo plutocrático que governa o país desde o fim da guerra civil há três décadas. Por fim, o levante dos negros norte-americanos contra a violência policial e o racismo estrutural, impulsionado pelo movimento Black Lives Matter, mas com amplo apoio multirracial, levou o antagonismo aberto entre rico e pobre, capital e trabalho, ao coração do império. As grandes manifestações de apoio e solidariedade à luta contra o racismo e o colonialismo se espalharam por mais de cinquenta países, explicitando que, acima de paixões nacionalistas e diferenças de raça, a luta dos trabalhadores é internacional.
Com o aprofundamento da crise capitalista, a tendência é o acirramento da luta de classes. A primeira metade do mês de outubro foi quente.
Na Europa, a tônica dos protestos contra o status quo foi dada pelas mobilizações contra o avanço do ajuste neoliberal e seu efeito colateral inevitável – o crescimento da ultradireita. Na Alemanha, França, Espanha, trabalhadores da saúde, educação e serviços básicos protagonizaram grandes jornadas de luta por melhores condições de trabalho, aumentos salariais, redução da jornada de trabalho e mais segurança laboral contra a segunda onda da Covid-19. Na Grécia, a população foi às ruas para protestar contra a leniência da ordem liberal com os partidos que pregam abertamente a violência de Estado, levando à decretação da ilegalidade do partido neofascista grego.
Na África, houve grandes manifestações na África do Sul, Tunísia e Nigéria. Os sul-africanos marcham por melhores condições de trabalho dos profissionais da saúde. Motivados pela ação arbitrária da polícia no mesmo bairro que detonou os protestos que culminaram com a Primavera Árabe em 2010, os tunisianos se mobilizaram contra a opressão violenta dos aparelhos de Estado. Por fim, na Nigéria, milhões foram às ruas por mais de dez dias, fechando aeroportos, rodovias e serviços públicos, para exigir o fim do esquadrão especial da polícia – SARS –, que se notabilizou pela extorsão e violência contra os pobres. A vitória da campanha #EndSars colocou na ordem do dia a luta pela reforma judiciária.
Na Ásia, a convulsão social é intensa. Na Tailândia, a mobilização exige o fim da monarquia que oprime com mão de ferro a população. No Quirguistão, as manifestações de rua levaram à deposição de um primeiro-ministro e um presidente em poucas semanas. Na Indonésia, uma greve geral sem precedentes na história recente do país, contrapondo-se à flexibilização das leis trabalhistas e ambientais, chegou a mobilizar cerca de cinco milhões de pessoas.
Na América Latina, a luta contra as novas formas de exploração combina-se com o combate às velhas formas de opressão. Na Argentina e no México, as mulheres voltaram às ruas para reivindicar o direito de decidir sobre seus próprios corpos. Na Costa Rica, cujo sistema político é relativamente estável, a população protesta há duas semanas contra o ajuste do FMI. Na Colômbia, às frequentes mobilizações contra a chacina de lideranças populares e a violação do acordo de paz com as FARC, soma-se a marcha histórica dos povos originários a Bogotá para exigir o direito a sua autodeterminação. No Haiti, estudantes tomaram as ruas para protestar em defesa da educação e contra a violência policial. No Peru, onde a letalidade da Covid-19 é uma das maiores do mundo, professores e estudantes protagonizaram grandes mobilizações contra a volta às aulas. No Chile, centenas de milhares de pessoas voltaram à Praça da Dignidade para marcar o aniversário de um ano da insurreição contra o modo de vida neoliberal. Por fim, na Bolívia, a cidadania vingou-se das oligarquias entreguistas, impondo uma derrota eleitoral acachapante aos golpistas que conspurcaram a constituição boliviana para depor Evo Morales.
Não há como esconder o sol com a peneira. A resistência dos trabalhadores pelo mundo afora transformou o planeta num vulcão prestes a entrar em erupção. No entanto, enquanto os explorados e oprimidos carecerem de um programa anticapitalista que os unifique como classe social, a luta de resistência contra os ataques do capital permanecerá condenada a uma estratégia defensiva e não terá como ir além da miséria do possível.
Em comparação com o ciclo de lutas da década passada, iniciado pela Primavera Árabe, o que ora se inicia representa um avanço no grau de consciência das classes oprimidas. A contraofensiva do trabalho está sendo forjada no calor dos confrontos contra o capital, longe das organizações políticas tradicionais, pelos movimentos de contestação que não se rendem aos imperativos do capitalismo da catástrofe. São as contradições não resolvidas que impulsionam a generalização e a radicalização do protesto social. É a fusão da luta e da crítica que transforma a revolta social em criatividade revolucionária para a construção de um outro modo de viver e produzir. Apoio e solidariedade integral a todos que se insurgem contra a barbárie capitalista! Contra a internacional do capital, a internacional do trabalho!
Contrapoder, 20 de outubro de 2020
Referências
- Monitor OIT, 6º edição, 23 de setembro de 2020. https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/documents/briefingnote/wcms_755910.pdf
- Banco Mundial. Poverty and Shared Prosperity 2020. https://www.worldbank.org/en/publication/poverty-and-shared-prosperity
- FAO. Global Report on Food Crises. September 2020 Update. http://www.fao.org/emergencies/resources/documents/resources-detail/en/c/1312540/
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