Bolsonaro parte para o tudo ou nada

A demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça levou ao ponto de saturação a crise político-institucional decorrente da eleição de um presidente que defende abertamente uma solução totalitária para os problemas nacionais. Ao acusar Bolsonaro de falsidade ideológica, advocacia administrativa e obstáculo à justiça, Moro escancarou a absoluta falta de compromisso do presidente com a ordem republicana.

Vinda de uma das principais lideranças da ultradireita, um de seus cabos eleitorais mais eficazes e um dos fiadores de seu governo, a acusação de que Bolsonaro é uma perigosa ameaça aos brasileiros – o que todos já sabiam – ganhou uma dimensão explosiva. A continuidade de um presidente que se autodeclara “chefe supremo”, acima de tudo e de todos, tornou-se totalmente incompatível com a sobrevivência do que ainda resta do arremedo de Estado de direito garantido pela Constituição de 1988.

O conflito entre Bolsonaro e Moro – dois candidatos a capitão do mato da burguesia – foi provocado pelo braço de ferro travado em torno do controle da Polícia Federal. Bolsonaro precisava cercear a autonomia de investigação dos órgãos de Estado para proteger sua família, intimidar adversários e perpetuar-se no poder. Moro, que ganhou notoriedade por usar e abusar da PF nas operações da Lava Jato, não quis abrir mão de suas atribuições. Sem cacife para participar do jogo sujo da pequena política, tornar-se-ia a uma reles rainha da Inglaterra.

A ruptura entre os dois principais agentes políticos da solução autoritária para a crise terminal da Nova República cria um novo momento político. Seguindo os passos de outras lideranças de extrema-direita, como o presidente húngaro Viktor Orbán, Bolsonaro parte para o tudo ou nada. Como um cavaleiro do apocalipse, o ex-capitão pretende aproveitar o cataclisma gerado pela crise sanitária e econômica para avançar sobre o Estado de direito.

Antevendo o fiasco da administração Bolsonaro e o risco de naufrágio da aventura golpista, Moro, seguindo os passos de Mandetta, como boas ratazanas que são, abandonou o barco para se aventurar em voo solo. Sai do ministério como candidato à presidência. Aposta na solução autoritária por dentro das estruturas do Estado.

O presidente miliciano abandonou definitivamente qualquer verniz democrático. Ao nomear um amigo do filho para substituir Moro e outro para presidir a PF, Bolsonaro reitera sua intenção de subordinar todo o aparelho do Estado a seus interesses particulares, em aberto desacato ao decoro. Movimenta-se com ousadia para desfechar um autogolpe que o livre das travas dos poderes legislativo e judiciário.

No entanto, a saída estrepitosa de Moro isolou Bolsonaro ainda mais e catalisou o movimento por sua deposição. Os crimes de responsabilidade cometidos pelo ex-capitão e os pedidos de impeachment na Câmara de Deputados acumulam-se dia a dia.

O temor de que Bolsonaro parta para o tudo ou nada contra a ordem constitucional aproximou adversários inconciliáveis. O espectro de partidos da ordem que advogam pela deposição de Bolsonaro é amplo, abrangendo até o PSL e o Partido Novo. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pediu que Bolsonaro renuncie antes de ser renunciado. Ainda que de maneira vacilante, discreta e envergonhada, Lula, que até há muito pouco era um dos maiores paladinos do “fica Bolsonaro”, também passou a se movimentar pelo “impeachment”.

A crescente insatisfação popular e a perspectiva de crises dantescas solapam os pilares do governo Bolsonaro. Sua base social e política de sustentação está reduzida ao apoio difuso que ainda lhe garantem  uma parcela de desvalidos, a maioria evangélicos reacionários; o extremismo exaltado de grupos de ultradireita que clamam pela volta do AI-5; o ativismo nas redes sociais de segmentos ressentidos da pequena burguesia e da classe média ameaçados pela crise econômica; e os militares de pijama que ocupam cargos em seu governo.

Para sobreviver à ofensiva institucional que ameaça seu mandato, o ex-capitão procura improvisar uma tropa de choque, composta de deputados corruptos do famigerado “Centrão”, liderados pelas figuras abjetas de Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto, renomados chefes de máfias parlamentares já condenados pelo trabalho sujo feito nos governos do PT. Conta também com a possibilidade eventual, cuja força real é desconhecida, de mobilizar militares nostálgicos dos porões da ditadura e policiais militares associados a grupos milicianos contra os poderes da república.

A sociedade brasileira encontra-se num impasse histórico, cujo desdobramento é imprevisível. Com a população confinada na quarentena, sem poder sair às ruas para legitimar um movimento pela deposição do presidente, o poder de fogo do establishment político para liderar uma campanha pela deposição do presidente é bastante reduzido. Em contrapartida, as condições para um golpe de Estado também não parecem presentes.

Sem ampla base de apoio empresarial, civil e militar, no meio de uma crise de saúde dantesca e de uma depressão econômica ciclópica, é pouco plausível que Bolsonaro reúna força real para instaurar a tirania do “chefe supremo” sobre a sociedade brasileira. Muito pelo contrário. As forças que clamam pela volta dos militares ao poder, por uma grande ironia do destino, têm uma composição débil e desarticulada, muito semelhante àquela existente nos estertores da ditadura militar. O mais provável é que seu governo seja trucidado pela crise em poucos meses.

Enquanto o impasse não for resolvido – e ele pode se arrastar por um longo período -, a sociedade fica sujeita ao imponderável. Contudo, para além das ações dos agentes que operam a pequena política, que podem provocar consequências irreversíveis, na ausência de uma pressão independente das classes trabalhadoras, o desfecho do impasse será determinado, em última instância, pelas exigências do capital.

Se Bolsonaro se revelar disfuncional para a grande burguesia, nacional e internacional, seja porque ameaça a tradição da democracia restrita que caracteriza historicamente o padrão de dominação burguês no Brasil, seja porque não cumpre as normas de comportamento impostas pela comunidade internacional, ou ainda porque atrapalha os negócios ou representa um risco à “paz social”, será descartado com um peteleco, sem nenhuma cerimônia. Em caso contrário, não é impossível que a burguesia e o imperialismo deem luz verde para que as forças armadas entrem em cena, transformando o país num laboratório político macabro.

Não há dúvida que o presidente miliciano representa o que há de mais perverso e perigoso na política nacional. Mas, para os trabalhadores, a mera substituição de Bolsonaro por Mourão, como parece ser o consenso do establishment, não é suficiente. As mazelas do povo brasileiro não serão resolvidas pela substituição do ex-capitão com delírios de ditador por um general reacionário e ultraliberal, sob a batuta de Rodrigo Maia e das velhas raposas da política nacional.

A sorte da classe trabalhadora depende de sua capacidade de impor uma derrota definitiva ao projeto liberal. Para tanto, é preciso que ela entre em cena com um projeto alternativo que dê uma resposta concreta aos problemas concretos do povo. A tarefa imediata – enfrentar a crise sanitária, o desemprego maciço e o risco totalitário – exige que a esquerda socialista se apresente unificada em torno de uma palavra de ordem comum, independente da burguesia: Fora Bolsonaro e Fora Mourão!

Mais ainda. Para enfrentar uma conjuntura particularmente adversa e perigosa, as organizações da esquerda socialista precisam criar urgentemente mecanismos de coordenação de suas atividades e de definição de um calendário de luta. A organização de um 1º de Maio unificado – mesmo que virtual pelas circunstâncias sanitárias –, com a representação de todas as forças da esquerda socialista, pode ser um primeiro passo simbólico e efetivo nessa direção.

Contrapoder, 27 de abril de 2020

2 comentários sobre “Bolsonaro parte para o tudo ou nada

  • 28 de abril de 2020 at 12:29 am
    Permalink

    Artigo detalha de forma minuciosa o conflito na política e a necessidade do acirramento do embate que se faz necessário e urgente para que a nação brasileira preserve a democracia.

    Reply
  • 28 de abril de 2020 at 11:13 am
    Permalink

    Matéria muito lúcida na análise e na proposta de saída para a crise institucional que está colocada.

    Reply

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *