Caos sanitário divide a burguesia

A Carta Aberta à Sociedade Referente a Medidas de Combate à Pandemia, assinada por significativa parcela do PIB brasileiro e seus asseclas, pede prioridade para a vacinação em massa da população.1 A súbita conversão da alta burguesia à política de imunização coletiva coloca em questão a gestão da pandemia pelo governo federal.

Demorou mais de um ano para que os neoliberais percebessem que a superação da crise econômica pressupõe o fim da pandemia. Foi necessário que a parcela de trabalhadores marginalizada do mercado de trabalho alcançasse quase um terço da força de trabalho e que a fome rondasse um quarto dos lares para que os endinheirados chegassem à conclusão óbvia de que a situação social é simplesmente deplorável. Foi preciso chegar a mais de 300 mil mortos oficiais – o que, na realidade, por causa da subnotificação elevada, equivale a pelo menos 450 mil vidas perdidas – para que a tragédia sanitária fosse considerada excessiva.

Antes tarde do que nunca. A percepção de que a gestão da crise sanitária do Brasil é um completo desastre coincidiu com o aumento da pressão internacional e, sobretudo, com a falta de leitos nos hospitais privados. Trata-se de uma mudança significativa – criminosamente tardia – no posicionamento do andar de cima em relação à pandemia.2

As pressões para uma mudança na política sanitária obrigaram Bolsonaro a sacrificar dois ministros estratégicos de seu núcleo duro. O pau-mandado que comandava o Ministério da Saúde muito pior do que um quartel, o patético general Pazuello, completamente desmoralizado por sua gestão calamitosa, foi substituído pelo inexpressivo cardiologista Marcelo Queiroga – o quarto ministro desde o início da pandemia.

O próximo da lista foi o alucinado que encabeça o Ministério das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, fervoroso trumpista, que a mando de Bolsonaro boicotou todas as iniciativas de quebra de patente das vacinas nos foros internacionais, e que realizou a façanha de se indispor com o governo chinês, principal fornecedor de insumos para os imunizantes brasileiros e maior parceiro comercial do país. Humilhado pelos senadores, foi escorraçado do Itamaraty para alívio geral.3

Numa sociedade que se aproxima da inacreditável média de três mil mortos por dia por Covid-19, a mera possibilidade de uma contenção do desatino já é recebida por muitos como um alento de esperança. No entanto, sem reconhecer a relação necessária entre neoliberalismo econômico e sanitário – vínculo que a Carta Aberta dos plutocratas olimpicamente ignora –, não há a mínima possibilidade de uma mudança substancial no rumo da tragédia brasileira. 

A interrupção da circulação desenfreada do vírus requer Auxílio Emergencial digno para que os trabalhadores não precisem enfrentar o risco de contrair a Covid-19 para não passar fome, socorro financeiro para que as pequenas e médias empresas tenham condições de enfrentar a tempestade e soberania sanitária para que não faltem vacinas para todos. Nada disso é possível sem o abandono do regime de austeridade fiscal e a articulação de uma ousada política anticíclica.

Na ausência de mudanças profundas na política econômica, o máximo que se pode esperar é uma contenção da tragédia pela diminuição do ritmo e da intensidade do genocídio sanitário. Não é possível depositar nenhuma confiança nas lágrimas de crocodilo dos endinheirados. Sem uma intervenção popular que questione pela raiz o Estado neoliberal e exija, para começar, a imediata deposição de Bolsonaro e Mourão, não há como interromper a hecatombe que avassala os brasileiros.

Contrapoder, 29 de março de 2020

Referências

  1. Economistas, banqueiros e empresários cobram medidas efetivas contra a pandemia. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/banqueiros-e-economistas-pedem-medidas-efetivas-de-combate-a-pandemia-em-carta-aberta.shtml
  2. Curiosamente, a política sanitária do exército brasileiro não segue a orientação do presidente Bolsonaro, tendo no isolamento social um de seus principais pilares. Ver: Exército espera 3ª onda da COVID-19, diz general Paulo Sérgio, em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/03/28/interna_politica,1251364/exercito-espera-3-onda-da-covid-19-diz-general-paulo-sergio.shtml
  3. Ao encerrarmos o editorial, tivemos conhecimento do pedido de demissão do Ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. A nota lacônica publicada pelo general não permite que se saiba a razão de sua saída do governo Bolsonaro. Não é impossível que, além de suscitar a pressão dos banqueiros e do Centrão, a caótica gestão sanitária de Bolsonaro também tenha afastado o apoio dos militares.

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