O fogo descontrolado que consome o pantanal e a floresta amazônica é reflexo direto da decisão do Estado brasileiro de saciar a sede de terra da coalizão predatória que comanda o desmatamento da floresta. A crescente especialização da economia na divisão internacional do trabalho transforma o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia nas principais frentes de expansão do capitalismo no Brasil. A queimada é a cortina de fumaça que abre caminho para o avanço do capital. [1]
A relação entre a economia primário-exportadora e a conquista de novas fronteiras para a exploração do capital é direta. Um documento preparado para orientar o posicionamento do governo francês em relação ao acordo de livre-comércio entre a União Europeia e o Mercosul estima que o aumento no fluxo de negócios entre as duas regiões acarretaria gigantescos “custos climáticos”. Considerando somente a área de pasto necessária para atender ao aumento da produção de carne bovina destinada ao mercado europeu, seria necessário aumentar em 5% ao ano a área de desmatamento das florestas da região. [2]
Antevendo as grandes oportunidades de negócios, os agentes do capital preparam o terreno. A estratégia verbalizada pelo Ministro do Meio Ambiente de aproveitar a pandemia para “passar a boiada” tem dado resultado. Sob a benção de autoridades que deveriam proteger a natureza e a hipócrita conivência da burguesia nacional e internacional, a ofensiva do capital sobre a floresta avança a todo vapor. O fogo é o meio mais barato e eficiente de eliminar a floresta e deixar os recursos naturais à mercê da pilhagem.
No Pantanal, os focos de queimadas entre janeiro e agosto de 2020 foram equivalentes à soma dos seis anos anteriores (2014 a 2019). O INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) calcula que, desde julho, o fogo destruiu quase 20% do bioma, área que é maior que o território de Alagoas. O fogo se alastra quase que invariavelmente em terras indígenas, reservas ambientais e terras públicas.
A situação da Amazônia é ainda mais dramática, pois a capacidade de regeneração da floresta tropical é baixíssima. Com 17% de seu bioma original já comprometido, a crise do ecossistema aproxima-se aceleradamente do ponto de irreversibilidade. Cientistas estimam que a destruição de 20 a 25% da floresta deixaria o ecossistema amazônico sem as condições necessárias para sua reprodução, dando início à mutação da vasta floresta tropical para um clima de savana. Apesar da proximidade do ponto crítico, a devastação da floresta não arrefece. Pelo contrário, o INPE estima que, após a chegada de Bolsonaro ao poder, o ritmo de desmatamento na região foi multiplicado por três, ficando, em agosto de 2020, no patamar mais elevado desde 2010. [3]
As queimadas no Pantanal e Amazônia reforçam o círculo vicioso do desmatamento global que todos os anos destrói uma área de floresta do tamanho aproximado da União Europeia. O aumento do dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa na atmosfera acelera o aquecimento global, e suas consequências nefastas sobre a vegetação e o regime de chuvas reforçam as condições para a eclosão de tempestades de fogo. Não por acaso, elas se multiplicam com fúria crescente. As gigantescas queimadas nas regiões de Nova Gales do Sul na Austrália, no polo Ártico e na Costa Oeste dos Estados Unidos prenunciam a repetição cada vez mais frequente de acidentes climáticos extremos. [4]
A burguesia não desconhece a gravidade da crise ambiental, mas nada faz para detê-la. As iniciativas para administrar o ritmo e a intensidade da depredação da natureza com políticas públicas e com o fomento à “economia verde” atuam sobre os efeitos do problema – o esforço de diminuir o ritmo da devastação – e não sobre suas causas estruturais – a pressão insaciável do capital sobre os recursos naturais do planeta.
Vistas em perspectiva, tais iniciativas são historicamente fadadas ao fracasso. À medida que a crise estrutural do capital se aprofunda, o braço de ferro entre os advogados do ecocapitalismo – que almejam o desenvolvimento capitalista autossustentável – e os defensores do capitalismo selvagem – que simplesmente correm atrás da taxa de lucro – pende inequivocadamente a favor dos segundos. Em última instância, os imperativos do capital se impõem de maneira implacável. O acelerado desmonte da política ambiental brasileira e o não cumprimento das metas do Tratado de Paris deixam patente o rotundo fracasso das iniciativas tomadas para conter a crise ambiental.
Nesse contexto, propostas como as da “Coalizão Brasil Clima, Floresta e Agricultura”, patrocinadas pela fina flor do agronegócio, do extrativismo mineral e da alta finança nacional, não podem ser levadas a sério. O mesmo vale para as pressões pela preservação da Amazônia das economias centrais – de longe os maiores responsáveis pela crise ambiental –, como a que vem sendo exercida pelos governos da Europa Ocidental [5]. Trata-se muito mais de propaganda para prestar conta à opinião pública e aumentar o poder de barganha dos países imperialistas do que de vontade política real de interromper a corrida por terras.
Nem poderia ser diferente. Afinal, é impossível imaginar que o Brasil poderia cumprir simultaneamente o papel paradoxal de ser, por um lado, pulmão do ecossistema planetário, e, por outro, depósito de indústrias sujas de baixo conteúdo tecnológico e elevado consumo energético, bem como celeiro agrícola e mineral da economia global – movimento inscrito nas tendências da divisão internacional do trabalho que não é problematizado por nenhuma facção da burguesia nacional e internacional que se arvora defensora do meio ambiente.
Na crise estrutural do capital, o caráter predatório do desenvolvimento capitalista é levado ao paroxismo. A necessidade incontornável de contrabalançar a tendência decrescente da taxa de lucro requer uma ofensiva implacável do capital contra o trabalho e o meio ambiente. A escalada da barbárie ambiental é o produto do rebaixamento sistemático do nível tradicional de vida dos trabalhadores; do esvaziamento progressivo das políticas públicas e da soberania popular; da ampliação progressiva do mercado mundial; da mercantilização de todas as esferas da vida; do barateamento do custo da força de trabalho e das matérias-primas; e da aceleração da obsolescência programada das tecnologias, processos estruturais do capitalismo em descenso.
Ensina a sabedoria popular que não é prudente colocar a raposa para cuidar do galinheiro. Posta contra a parede pela crescente dificuldade de compatibilizar acumulação de capital e preservação do meio ambiente, a burguesia não hesitará em depredar as últimas reservas de recursos naturais do planeta, mas jamais cogitará abrir mão de seu modo de vida e produção, cujo caráter ilimitado requer inexoravelmente a depredação do meio ambiente.
Sem a intervenção de quem vive do próprio trabalho não há nenhuma esperança de reverter a marcha insensata de um padrão de desenvolvimento econômico que ameaça o futuro da vida no planeta. A reconciliação do homem com a natureza passa por mudanças qualitativas no modo de produzir e viver. Superar a subordinação da vida ao jugo do capital e submeter as necessidades sociais aos imperativos do equilíbrio ecológico são desafios inescapáveis.
A humanidade corre contra o tempo. Somente a organização de uma sociedade comunista, onde cada ser humano contribua para a produção social segundo sua capacidade e consuma a produção social conforme as suas necessidades, respeitando os limites objetivos do ecossistema, será capaz de evitar o holocausto ambiental que se aprofunda.
Contrapoder, 21 de setembro de 2020.
1 – A coalizão do desmatamento é liderada pelos grupos empresariais relacionados com o agronegócio, o extrativismo mineral, os grandes empreendimentos que giram em torno das grandes hidroelétricas, as empreiteiras que se locupletam com a abertura de estradas, o parque industrial intensivo no uso de energia – siderurgia, alumínio, cimento –, bem como o sistema financeiro que funciona como grande gestor da especulação mercantil. O assunto é discutido em detalhe no livro do professor Luiz Marques, Capitalismo e Colapso Ambiental.
3 – As consequências do desaparecimento da floresta amazônica seriam dramáticas. Pesquisadores da Universidade de Princeton estimam que o fim da Amazônia acarretaria uma redução média de 25% nas chuvas no território brasileiro e um aumento médio da temperatura de 2%, com impacto de 0,25 grau na temperatura do planeta. https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/09/10/incendios-estao-levando-a-amazonia-a-um-ponto-sem-volta
4 – No final de 2019, queimadas selvagens, que se arrastaram até os primeiros meses de 2020, destruíram mais de 8 milhões de hectares na região de Nova Gales do Sul na Austrália – área superior ao território da Áustria, fazendo arder mais de 2.400 casas e matando mais de um bilhão de animais. Em meados de 2020, incêndios sem precedentes na região ártica liberaram na atmosfera um volume de dióxido de carbono equivalente a toda a produção anual de carbono da Suécia. A fúria do fogo também se fez presente na costa oeste dos Estados Unidos, queimando mais de dois milhões de hectares, destruindo cidades inteiras e provocando a evacuação de milhões de pessoas. A coluna de fumaça das maiores queimadas de que se tem registro na região viajou mais de 8 mil quilômetros, até norte da Europa. Ver, https://www.bbc.com/portuguese/geral-49164426
5 – Relatório da Oxfam revela que a emissão de gases de efeito estufa das regiões que concentra o 1% mais rico da população mundial é equivalente ao da metade mais pobre do planeta. https://oxfamilibrary.openrepository.com/bitstream/handle/10546/621052/mb-confronting-carbon-inequality-210920-en.pdf
O Editorial chama mais uma vez a atenção para a gravidade da situação ambiental por que passa o planeta e o Brasil, e como os dois projetos neoliberais para enfrentar essa crise estrutural do capital variam apenas na velocidade que cada um se propõe a fazê-lo: um de forma desembestada, outro de forma mais lenta, mas ambas continuam destruindo a Natureza. A gravidade dessa situação tem que ser enfrentada de forma urgente, apesar das dificuldades que o governo aliado dos grandes interesses internacionais busca criar a todo momento. Defender a Amazonas e o Pantanal só pode ganhar força, espaço e vir a ser efetiva, se for compreendida como parte de uma luta contra o Capital, luta por sua superação, luta pelo socialismo!