Quando a tirania asfixia todas os aspectos da vida, a rebeldia contra a opressão torna-se um imperativo incontornável. É o que mostra a revolta popular desencadeada pelo brutal assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. É o que levou as torcidas organizadas e o movimento negro a convocar manifestações contra a ameaça de golpe no Brasil e contra as mortes absurdas de João Pedro, Miguel e tantos outros negros pobres vítimas da violência racista.
O estrangulamento de Floyd, um trabalhador de Minneapolis, foi a gota d’água para um levante popular sem precedentes contra as injustiças raciais e sociais. Sob as consignas “não consigo respirar”, “vidas negras importam” e “sem justiça, sem paz”, há duas semanas os Estados Unidos vivem os maiores protestos desde as jornadas pelos direitos civis nos anos 1960. As manifestações protagonizadas pela juventude negra, com amplo apoio de toda a população – em sua maioria trabalhadores precarizados –, já alcançaram mais de 650 cidades em todos os estados do país.
Mais do que uma repetição de tantos outros protestos contra a sistemática violência policial que barbariza a população negra, o levante da juventude norte-americana é um grito contra o racismo estrutural e a desigualdade social que constituem a quintessência do capitalismo norte-americano. As contradições seculares de uma sociedade de origem escravagista, potencializadas pelos efeitos regressivos do desmantelamento neoliberal das políticas públicas, foram levadas ao paroxismo pelos efeitos devastadores da crise sanitária e econômica.
Em menos de três meses, a pandemia tirou a vida de mais de 120 mil norte-americanos, sacrificando de maneira completamente desproporcional a população pobre. Com uma taxa de mortalidade três vezes maior que a dos brancos, quase 30 mil negros perderam suas vidas. O efeito devastador da crise sanitária veio acompanhado de uma escalada sem igual nas taxas de desemprego. Desde meados de março, cerca de 37 milhões de norte-americanos perderam o emprego. Em poucos meses, praticamente o dobro de postos de trabalho criados na década anterior foi eliminado. Novamente, as maiores vítimas foram os negros e os latinos.
O levante da juventude norte-americana catalisou a luta de classes pelo mundo afora. Pelo menos quarenta países de todos os continentes têm realizado gigantescas manifestações contra o racismo e as desigualdades sociais tendo como referência as consignas do movimento “Vidas Negras Importam”.
O fim da letargia social inaugura um novo momento histórico. Sem ter mais o que perder, trabalhadores de todos os cantos do globo desafiam a própria sorte e, em plena pandemia de coronavírus, se auto-organizam, lançando mão dos parcos instrumentos de que dispõem, para exigir justiça e mudanças sociais.
A rebelião que vem do Norte animou a retomada das manifestações de rua contra Bolsonaro. O balanço preliminar da jornada de luta do dia 7 de junho é inequivocamente positivo. O comparecimento superou as expectativas. Apesar do chamado das lideranças do PSB, PDT, PT, Cidadania e PSD desaconselhando a realização do ato, da grande mídia que ocultou o evento, bem como das declarações de intelectuais procurando esvaziá-lo, o país registrou mobilizações expressivas nas principais cidades do país e atos menores, mas importantes por seu simbolismo, em inúmeras cidades do interior. Em São Paulo, a diferença numérica entre manifestantes pró e contra Bolsonaro foi acachapante, ficando, na pior das hipóteses, em torno de 1 para 50.
Os protestos reuniram uma diversidade de forças sociais – movimento negro, torcidas organizadas, sindicatos, movimento feminista e LGBTQ, e organizações da esquerda socialista. Quem foi às ruas foi recebido com efusiva simpatia e estímulo por parte da população. Como regra geral, as manifestações foram conduzidas com muita responsabilidade política e sanitária pelos militantes e transcorreram em relativa tranquilidade, apesar da presença maciça de uma polícia treinada para provocar e reprimir violentamente as manifestações populares.
As exceções mais aberrantes ficaram por conta de Belém e Fortaleza, estados governados respectivamente pelo PMDB e PT, onde, sem nenhum motivo, a repressão extrapolou completamente até mesmo os padrões truculentos tradicionais, indo muito além da intimidação dos manifestantes pela ostentação do aparelho repressivo, da infiltração de agentes provocadores para provocar vandalismo, do ataque covarde a militantes que se dispersam no final dos atos e da prisão arbitrária de militantes para dissuadir novas manifestações, práticas que já se tornaram rotineiras nas ações das polícias militares em todos os estados.
No último domingo, as ruas foram ocupadas pelas forças antirracistas e antifascistas, e ficou evidente que a base social dos que apostam na aventura miliciana é minúscula. Quando confrontados com as forças populares, os reacionários tergiversam e fogem da batalha.
Os ventos começam a mudar. O presidente miliciano não tem força própria para realizar seus desatinos. Se os trabalhadores permanecerem nas ruas, bloqueando as manobras golpistas, os dias de glória de Bolsonaro estarão contados. Tomar as ruas, barrar o golpe, evitar o genocídio sanitário, defender o emprego e a renda dos trabalhadores, combater o racismo estrutural, liquidar pela raiz a segregação social são tarefas essenciais para evitar o avanço da barbárie capitalista no Brasil.
Contrapoder, 08 de junho de 2020.