Para além do circo eleitoral que distrai a atenção dos trabalhadores com as grotescas extravagâncias da pequena política, o antagonismo entre os dois principais candidatos à presidência da República reflete uma profunda fratura da burguesia brasileira em relação à forma de administrar o impasse institucional face à crise terminal da Nova República.
Após muita tergiversação, setores mais tradicionais da plutocracia nacional, liderados pela Fiesp e pela Febraban, manifestaram-se ruidosamente pela importância de preservar o precário Estado de direito. Atentos às pressões do capital internacional e do imperialismo, temem que uma aventura golpista possa gerar insegurança jurídica e prejudicar os negócios. Com sólidas conexões nos aparelhos de Estado e amplo apoio nos grandes meios de comunicação, defendem a constituição de um governo de união nacional que estabeleça bases para a construção de uma eventual República Nova a partir dos escombros da Nova República.
Em contraposição, sem tergiversação alguma, empresários que encheram as burras na onda neoliberal conspiram abertamente em favor de uma solução despótica para a crise política – sobretudo os segmentos que mais dependem da acumulação por espoliação, em que há forte presença de capitais que vivem da superexploração do trabalho e da especulação mercantil e imobiliária, com destaque muito particular para a Confederação Nacional da Agricultura. Sem uma expressão nas estruturas do poder estatal proporcional ao volume da riqueza acumulada, exigem uma reorganização abertamente autoritária do condomínio de interesses que controla o poder estatal. Com ostensivo apoio dos chefes das forças armadas e das polícias militares, notadamente das alas nostálgicas dos anos de chumbo da ditatura, e com expressiva sustentação no submundo de grupos paramilitares, das igrejas evangélicas da teologia da prosperidade e da política fisiológica, defendem abertamente o uso da força bruta como único meio de evitar qualquer ameaça a seus privilégios.
A polarização política camufla a convergência de interesses que unifica os donos da riqueza. Para além da superfície, a burguesia mantém controle absoluto sobre o processo político, definindo unilateralmente a agenda e o contexto das eleições presidenciais. Não obstante a escalada da fome, a depressão do mercado de trabalho, a precarização do trabalho, o aumento galopante do custo de vida, o desmanche das políticas públicas, a ampliação das desigualdades sociais e a dantesca devastação ambiental, a burguesia blindou qualquer possibilidade de questionamento do padrão de acumulação liberal-periférico.
Regida pelas regras da reforma política promulgada por Eduardo Cunha no auge da ofensiva reacionária, a eleição ficou restrita aos partidos comprometidos com a perpetuação da ordem neoliberal. As agremiações que poderiam vocalizar uma crítica à ordem neoliberal foram cooptadas ou pura e simplesmente marginalizadas do processo eleitoral. O pleito de 2022 foi reduzido a uma escolha tacanha entre os dois extremos da miséria do possível, contrapondo opostos que se revezam para bloquear qualquer proposta de uma solução popular e democrática, de caráter claramente anticapitalista, para a crise civilizatória que abala a vida nacional.
O vale-tudo eleitoral é altamente funcional aos interesses estratégicos da burguesia. A manipulação da opinião pública, sob a égide dos metadados controlados pelas grandes corporações, que transforma o pleito eleitoral, recheado de fake news e insultos recíprocos, numa guerra do bem contra o mal. Regida pela lógica do espetáculo do marketing político, a campanha eleitoral oculta os interesses de classe subjacentes à disputa política e banaliza o debate público, impedindo qualquer possibilidade de uma discussão racional sobre os problemas reais da sociedade e suas possíveis soluções. A luz verde para que as forças de extrema direita operem ao arrepio da lei envenena o ambiente político e instiga a violência política, desestimulando a mobilização popular e corroendo o pouco que ainda resta de credibilidade das instituições. A ostensiva tutela militar rebaixa as aspirações da esquerda da ordem e prepara o terreno para uma ruptura da ordem institucional, na eventualidade de a paciência do povo terminar e a luta de classes fugir ao controle das classes dominantes.
Nessas condições, qualquer que seja a fração burguesa vitoriosa, estará consolidado o ciclo de ataques contra os direitos dos trabalhadores, as políticas públicas e o meio ambiente, que começou em 2014, com o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, intensificou-se em 2016, com o golpe institucional de Michel Temer, e foi levado ao paroxismo em 2019, com a chegada de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto.
Os dois braços da ordem neoliberal, evidentemente, não são iguais. Bolsonaro representa a dose máxima do veneno; Lula, a dose mínima. Sem uma mudança qualitativa na organização da economia, é impossível interromper a progressiva deterioração das condições de vida dos trabalhadores. O máximo que se pode esperar é um arrefecimento temporário no ritmo e na intensidade do processo de reversão neocolonial – condicionante em última instância da barbárie brasileira.
A crise política e institucional brasileira não tem a mínima possibilidade de uma solução democrática por dentro das instituições carcomidas da Nova República. Décadas de contrarreformas destituíram a Constituição de 1988 de qualquer conteúdo democrático e republicano. Do pacto social que institucionalizou o acúmulo de lutas contra a ditadura militar sobrou apenas a casca. A nostalgia de um passado idealizado é um anacronismo histórico que não abre a possibilidade de dias melhores. Não há condições objetivas para a conciliação de classes. A crise política ainda não encontrou uma solução capaz de estabilizar o regime.
Sem a entrada em cena dos trabalhadores e uma mudança qualitativa na correlação de forças, a história continuará em circuito fechado. A tarefa fundamental dos trabalhadores é apresentar uma alternativa ao modelo econômico e político e construir força política para levá-la a cabo. O desafio imediato é combater a fome e o desemprego. O desafio subsequente é implementar um programa de mudanças estruturais que eliminem a segregação social, superem o colonialismo cultural e rompam as amarras que subordinam o Brasil à lógica dos grandes negócios do capital, nacional e internacional. Os trabalhadores devem lutar por Direitos Já! Para tanto, precisam de instrumentos políticos que unifiquem suas forças contra o capital. O desafio imediato é sair da estaca zero. Apenas com a união dos trabalhadores, cimentada num programa de independência de classe, haverá condições de questionar o mando despótico dos que se locupletam com a miséria do povo.
Contrapoder, 23 de agosto de 2022