Com a epidemia de coronavírus em franca expansão e um acúmulo de óbitos dantesco, interromper a mortandade gratuita dos trabalhadores por Covid-19 é a prioridade número um da conjuntura nacional. O descaso criminoso das autoridades públicas com a saúde da população pobre revela que o genocídio sanitário é uma política de Estado.
A tragédia anunciada na cidade de Manaus – a segunda em menos de seis meses – é um retrato ampliado da absoluta falta de compromisso do poder público com a defesa da vida humana. Apesar dos reiterados avisos e dos apelos desesperados de epidemiologistas e trabalhadores da saúde, nada foi feito para evitar o total descontrole da epidemia e prevenir o colapso do sistema de saúde. No ápice da crise sanitária, a cidade sequer dispunha de balões de oxigênio para evitar que os doentes morressem em massa por asfixia. Na construção da catástrofe humanitária, prefeito, governador e presidente da república conspiraram em uníssono contra a saúde pública, muito mais preocupados em atender aos interesses dos empresários ávidos por lucro do que em preservar a vida das pessoas. Seus crimes estão registrados na história e são imprescritíveis.1
A possibilidade de que, com a chegada da vacina, a epidemia de coronavírus seja rapidamente debelada é uma quimera. Apesar da propaganda oficial e da guerra de factoides entre o governo federal e o governador de São Paulo, o país ainda não tem um plano nacional de vacinação para imunização do conjunto da população e sequer dispõe de doses suficientes para atender à primeira fase da campanha de vacinação dos profissionais da saúde, trabalhadores estratégicos e população vulnerável – cerca de 30 milhões de pessoas.2 Um estudo da Airfinity, consultoria especializada em informação científica do Reino Unido, estima, com base nos contratos assinados pelo governo brasileiro com as indústrias farmacêuticas, que o país não terá doses suficientes para atingir a imunização coletiva antes de dezembro de 2022. E nem mesmo conseguirá vacinar 80% de sua população de risco antes de outubro de 2021.3
Para além da inépcia colossal dos quadros dirigentes do governo Bolsonaro, presente em todas as dimensões de sua administração, seu antissanitarismo militante responde a uma política deliberada de propagação do vírus como meio de acelerar uma suposta “imunização de rebanho” pela contaminação espontânea da população – uma estratégia kamikaze, na contramão do que prega todo o conhecimento científico disponível sobre o comportamento das pandemias. É o que conclui o estudo feito por uma equipe multidisciplinar do Centro de Pesquisa e Estudos de Direito Sanitário – CEPEDISA – da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) a partir de mais de 3000 iniciativas governamentais relacionadas à crise do coronavírus entre março de 2020 e janeiro de 2021 – portarias, medidas provisórias, resoluções, instruções normativas, leis, decisões, decretos e manifestações oficiais das autoridades.4
As evidências de que o governo Bolsonaro conspirou ativamente contra medidas que poderiam conter a circulação do coronavírus, no plano nacional e internacional, constituem provas cabais de que o governo federal executa uma política sanitária genocida. Pesquisa semelhante das medidas adotadas pelos governadores (a começar pela gestão João Dória) e prefeitos chegaria a resultados não muito diferentes. Mais do que uma marca exclusiva do governo federal, a estratégia de deixar o vírus circular livremente, ainda que de maneira matizada e disfarçada, é uma política de Estado, sancionada pelos poderes legislativo e judiciário e apoiada incondicionalmente pela burguesia brasileira.
A crise do coronavírus escancarou o caráter antinacional e antissocial do capitalismo dependente. Na ausência de soberania sanitária, o país fica dependente de vacinas produzidas pelos grandes conglomerados farmacêuticos e da política nacionalista de seus governos. Na falta de vacinas para todos, o Estado encontrará meios de fazer a vacina chegar aos poucos que mandam. A imunização dos ricos será feita a preço de ouro pela rede de saúde privada.5
A exigência de uma política pública consequente contra o avanço da pandemia é um imperativo humanitário que extrapola o horizonte nacional e se impõe como uma necessidade impreterível da classe trabalhadora. Sem distanciamento social e vacinação em massa de toda a população mundial, a circulação do coronavírus não será interrompida. Sem contar o fato de que as mutações do vírus abrem brechas para o aparecimento de cepas mais infecciosas e resistentes à vacina. Enquanto o mundo não alcançar a imunização coletiva, as mortes acumular-se-ão e a crise econômica se arrastará indefinidamente, ameaçando a classe trabalhadora com o espectro de uma pandemia de fome.
No Brasil, o distanciamento social e a vacinação em massa só ocorrerão se os trabalhadores tiverem condições reais de impô-los pela força à burguesia. Não conseguirão fazê-lo sem mobilizações sociais de grande envergadura que provoquem uma mudança substancial na situação política nacional. O primeiro desafio é depor, de baixo para cima e o mais rapidamente possível, Bolsonaro e Mourão. Somente assim abrir-se-á a possibilidade de colocar em marcha um plano emergencial de vacinação pública, baseado em medidas de segurança econômica que assegurem condições efetivas de isolamento social aos trabalhadores e garantia de soberania sanitária pela quebra de patentes das indústrias farmacêuticas e produção nacional de remédios e vacinas.
Referências
- Sobre a crise em Manaus, ver https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55684605
- A previsão de vacinação do Ministério da Saúde é que o grupo de risco não será vacinado antes do segundo trimestre de 2022. https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/01/20/vacinacao-grupos-brasil-coronavirus.htm
- Notícia sobre pesquisa da Airfinity em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/12/10/com-acordos-atuais-de-vacinas-brasil-so-atingira-imunidade-no-fim-de-2022.htm
- Ver Boletim No.2 – Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil. São Paulo, 23/07/2020. https://www.conectas.org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-2
- Jornais noticiam que já existe negociação direta de empresas brasileiras com as farmacêuticas que produzem vacina. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2021/01/empresas-buscam-governo-por-aval-para-comprar-33-milhoes-de-doses-da-vacina-de-oxford.shtml?utm_source=meio&utm_medium=email