O atrito público entre o Ministro da Economia e o Presidente da República em torno do valor, forma de financiamento e abrangência do que pode vir a ser o programa Renda Brasil – uma reconfiguração do Bolsa Família – explicita a impossibilidade de conciliar a tirania do regime de austeridade fiscal com as exigências mínimas da política parlamentar. Afinal, por maior que seja a manipulação da opinião pública, o ritual eleitoral que de dois em dois anos submete os agentes políticos ao crivo do voto requer alguma base de sustentação popular.
Ao afirmar que “furar” a regra do Teto de gastos aproxima o presidente da zona de impeachment, Guedes explicitou seu papel de cão-de-guarda dos interesses rentistas que se locupletam às custas da dívida pública. Ao repreender rispidamente seu ministro, declarando que “não podemos tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”, Bolsonaro advertiu a plutocracia que o jogo parlamentar exige algum tipo de raio de manobra para a administração da miséria.
Apesar do sobressalto que o embate de Bolsonaro com Guedes gerou no mercado financeiro, o arroubo populista do presidente miliciano não representa uma mudança de rumo na política econômica nem coloca minimamente em questão o projeto neoliberal. Na ausência de alternativa para enfrentar a crise econômica e seus reflexos nefastos sobre as finanças públicas, o debate sobre quem deve arcar com o ônus do “ajuste fiscal” permanecerá restrito aos marcos do regime de austeridade institucionalizado pela Lei de Responsabilidade Fiscal de Fernando Henrique Cardoso e levado ao paroxismo pela PEC do Teto de gastos de Michel Temer.
Se não se pode “tirar dos pobres” e nem se cogita “tirar dos ricos”, só resta tirar dos “remediados”, vender patrimônio público e ampliar a dívida pública. É a senha para novos ataques contra os servidores públicos, para o aumento da carga tributária sobre o trabalho, a privatização das empresas estatais e a flexibilização do Teto de gastos, ao sabor dos apetites fisiológicos do Centrão. Entre o mercado – hoje representado por Guedes – e o Estado – no momento encarnado Bolsonaro – a ditadura do capital buscará um ponto de equilíbrio (com ou sem Guedes, com ou sem Bolsonaro e dentro ou fora democracia).
É nesse contexto de absoluta falta de horizonte que se deve avaliar a importância estratégica da vigorosa greve dos carteiros, que mobiliza 70% da categoria, contra a retirada arbitrária de seus direitos e contra o projeto criminoso de privatização dos Correios – uma empresa rentável e com função social estratégica. Sem a resistência do trabalho, não haverá limite à ofensiva do capital contra os direitos dos trabalhadores, as políticas públicas, os interesses nacionais e as liberdades democráticas.
No entanto, os trabalhadores não podem apenas se defender dos ataques do capital. Precisam articular uma contraofensiva que unifique a classe em torno de um projeto de sociedade alternativo. Sem uma agenda política própria, que coloque no horizonte a necessidade e a possibilidade de transformações estruturais nas bases econômicas e sociais, a luta dos trabalhadores consegue apenas arrefecer o ritmo e a intensidade dos ataques do capital. Não é pouca coisa, mas fica muito aquém do que exige nossa situação histórica.
A pauta que conduziria a uma solução para a crise econômica e fiscal que preservasse os interesses da classe trabalhadora é interditada do debate público. A premência de uma estratégia anticíclica, que coloque a geração de emprego como prioridade absoluta, o que implica obrigatoriamente a ruptura do Plano Real, é vista como crime de lesa pátria. A urgência de abandonar o padrão de acumulação liberal-periférico, que condena a economia brasileira a uma posição cada vez mais rebaixada na divisão internacional do trabalho, não é sequer cogitada. A necessidade de desvalorização da dívida pública como único meio de estancar a sangria que as despesas financeiras representam aos cofres públicos e como forma de liberar a política econômica do jugo do grande capital é estigmatizada como terrorismo econômico. A possibilidade de uma reforma tributária progressiva, que aumente substancialmente os impostos sobre o lucro e a riqueza, é sistematicamente protelada para um futuro indefinido que nunca se efetiva. Na verdade, o debate público é rigidamente controlado por grupos empresariais que só abrem espaço para a discussão das questões que interessam ao capital.
O mutismo da oposição que faz parte da esquerda da ordem – PT, PCdoB, PSB, PSOL… – em relação aos rumos da política econômica e sua indiferença em relação às lutas dos trabalhadores revela sua falência histórica. A ilusão de um capitalismo dependente edulcorado terminou em catástrofe. Para sair desse antro estreito, é preciso reconstruir de cabo a rabo as organizações políticas e os métodos de luta da classe dos que vivem do próprio trabalho.
A questão central é unificar os “paupérrimos”, “pobres” e “remediados” em torno de um projeto político que coloque na agenda nacional a urgência de uma verdadeira revolução democrática. É hora de por uma pá de cal sobre os privilégios aberrantes da plutocracia. É o desafio de nosso tempo. É o primeiro passo para uma sociedade que vá além do capital.
Excelente editorial. Aliás, os editoriais do Contrapoder são expressões da consciência crítica brasileira confrontada aos desafios históricos atuais. Indispensáveis para orientar a práxis revolucionária da esquerda socialista.