E daí?

Os que lavam a mãos o fazem numa bacia de sangue
“Os Fuzis da Senhora Carrar”, Bertolt Brecht. (Lembrado por Lima Duarte em homenagem a Flávio Migliaccio)

Enquanto milhares de pessoas morrem sem assistência hospitalar e o oceano de desempregados se avoluma, Bolsonaro desdobra-se para eximir-se de qualquer responsabilidade pelo combate ao coronavírus e pela política econômica desastrosa que agrava o mergulho recessivo. Na sua narrativa delirante, a “reação histérica” a uma “gripezinha” que, mais dia menos dia, infectará toda a população, seria a causa da debacle da economia. Insiste que a pandemia se resolve sozinha e não há nada que se possa fazer para contê-la. Se as pessoas voltarem a trabalhar, a economia retornará à normalidade. Vida que segue. Cada um que cuide de si.

Pescador em águas turvas, o ex-capitão recorre à insensibilidade em relação à morte, aprendida na caserna e aprimorada na camaradagem miliciana, como arma política. Diante de uma situação marcada pela crise terminal da Nova República e pelo crescente risco de convulsão social provocado tanto pela tragédia sanitária quanto pela escalada do desemprego, apresenta-se como o homem providencial que garante a ordem e o progresso, custe o que custar.

Apologeta dos porões da ditadura, aposta no caos sanitário, econômico e social para alavancar seu projeto de fechar o regime e se autoproclamar “chefe supremo”. Oferece à burguesia a possibilidade de aproveitar-se do imobilismo da população para desfechar um golpe preventivo contra a ameaça potencial de uma insurreição das massas.

Por mais paradoxal que possa parecer, na disputa pela representação do poder burguês, a oposição parlamentar a Bolsonaro também aposta no caos e joga com a morte. A estratégia de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com a benção do Supremo Tribunal Federal, é “cozinhar o galo” à espera da melhor oportunidade para impetrar uma solução institucional. Avaliam que o acúmulo de defuntos e a fome generalizada trucidarão o governo Bolsonaro, criando assim as condições para o impeachment.

Liderados pelo PT, os partidos da esquerda da ordem fazem jogo duplo. Flertam com o impeachment, mas trabalham pelo “fica Bolsonaro”. Sem força para comandar o processo de impeachment, julgam que não é o momento de propor a deposição do presidente. Quando será? Contrariando a própria retórica, que adverte para o risco da solução ditatorial, mantêm o olho em 2022. Jogam todas as fichas na lenta sangria de Bolsonaro. Dançando na beira do abismo, tratam as ameaças golpistas como meras bravatas, na crença de que a crise política possa ser resolvida por dentro da própria ordem putrefata. As vidas que ficarem pelo caminho são o preço a pagar pela “realpolitik”.

Cumprindo seu papel histórico de força moderadora, que arbitra as guerras intestinas entre os partidos da ordem e intervém abertamente em casos extremos, os militares também surfam na estratégia macabra da necropolítica. Não se importam com a vida das pessoas. Se Bolsonaro emplacar o golpe, serão seus avalistas. Se perceberem que prevalecerá a solução institucional, sairão como os garantidores da Constituição. Se o impasse político perdurar, poderão sempre aproveitar a situação para ensaiar voo solo, como fizeram em 1964. Atuam como cães de guarda do capital.

Na ausência de uma presença ativa da classe trabalhadora, a solução para a crise política que assola o país será decidida, em última instância, pelo alto clero da burguesia. Uma burguesia tosca, sem horizonte histórico, e ultraparticularista, cuja acumulação primitiva remonta à escravidão, não tem nenhum apreço pela vida. Preocupa-se única e exclusivamente com os negócios. Na era da reversão neocolonial, perdeu definitivamente toda e qualquer veleidade civilizatória que porventura um dia tenha acalentado.

Até o momento, os maganos têm endossado o caminho de Bolsonaro. Não há indicação de que abandonarão o capitão do mato se não forem forçados a tanto. O dono do maior banco de investimento do Brasil – a XP Investimentos –, Guilherme Benchimol, na maior desfaçatez, resumiu o sentimento que reina no andar de cima: “O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média alta. […] Se as reformas continuarem avançando, a crise política não atrapalha”. O recado dos donos do poder para a patuleia foi sintetizado na cínica propaganda do Bradesco: “aguenta firme, vai passar”. Afinal, como explicitou o Ministro da Economia, Paulo Guedes, num arroubo de sinceridade em “live” promovida pelo Banco Itaú, no Brasil “200 milhões de trouxas são explorados por seis bancos”. Quanto vale a vida de um trouxa?

Dom Quixote às avessas, Bolsonaro é um cavaleiro das trevas que, protegido por forças milicianas, combate os desvalidos e os desamparados em prol de interesses espúrios do capital. A hora de sua deposição já passou. Mas ela só ocorrerá quando os trabalhadores entrarem em cena. Quando o risco totalitário se apresenta, a tergiversação é um crime. Aqueles que se omitem são cúmplices da barbárie sanitária, social e política. Não serão esquecidos jamais.

Contrapoder, 11 de maio de 2020

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