O programa político das classes burguesas no atual período consiste na legitimação eleitoral do golpe de 2016 e de sua pauta política, econômica e ideológico-cultural, consolidando um novo bloco histórico que aprofunda a regressão colonial, a superexploração do trabalho, e restringe o espaço político dos trabalhadores. Independentemente de quem for eleito em outubro, busca-se garantir por meio de um cerco político e institucional a manutenção e aprofundamento do neoliberalismo e da democracia restrita (e mesmo sua substituição por um regime fascista ou cesarista militar, evidente no apoio de diversos setores do capital ao bolsonarismo), dando continuidade à precarização do trabalho, à retirada de direitos, à pilhagem de empresas e bens públicos e sociais, à repressão e à criminalização das lutas sociais. Para este programa, todas as “vias” eleitorais se reduzem a uma: aquela que estabiliza a ofensiva burguesa contra os trabalhadores iniciada em 2016. Isso significa que, mesmo falido, o capitalismo da barbárie continua e se aprofunda ceifando vidas, desempregando e jogando milhões na miséria, ao mesmo tempo em que incrementa as taxas de lucro e concentra a renda ainda mais, numa dinâmica que leva ao paroxismo o caráter destrutivo, desigualitário e irracional da lógica do capital. O atual cenário de pandemia, colapso ambiental, crise econômico-social e avanço da extrema direita pelo mundo evidencia a crise estrutural do capitalismo e a impossibilidade de que possa resolver esses problemas e atender minimamente qualquer perspectiva democrática, ecologicamente adequada, civilizacional e emancipatória, particularmente num país periférico como o Brasil.
Para os trabalhadores não é possível compactuar com nenhuma perspectiva política comprometida com esse programa, mesmo que na versão pretensamente democrática do “frenteamplismo” contra o bolsonarismo. Isso porque a aliança com forças políticas que protagonizaram o golpe de 2016 e conduziram a aprovação de sua pauta significa o estabelecimento de um veto prévio à sua anulação, em mais um ardil da autocracia burguesa contra os trabalhadores. Diante disso, as classes burguesas e as forças golpistas que as representam politicamente, bolsonaristas ou não, estão na trincheira oposta à dos trabalhadores e suas organizações no atual período da luta de classes. Nesse sentido, é crucial para os trabalhadores e a esquerda socialista apresentarem na atual conjuntura um programa político que realize uma leitura adequada da atual quadra histórica da formação social brasileira e que possa dar sentido às suas lutas, num movimento permanente de crítica, conscientização e mobilização. Um programa que não apenas se proponha a solucionar os problemas candentes do momento atual, mas que também estabeleça as mediações entre as medidas que visam refrear a exploração e a opressão burguesas e aquelas voltadas para a necessária superação socialista do capitalismo.
Um programa desta natureza se estrutura em torno de três eixos, que aqui exporemos de maneira sumária, mas que serão objeto de maiores detalhamentos em outros editoriais e artigos neste site. Em primeiro lugar, é preciso estabelecer medidas emergenciais de combate às crises econômico-social e pandêmica. Além da imediata deposição e prisão de Bolsonaro, são necessárias medidas de combate à fome, ao desemprego, ao arrocho salarial, à inflação e à pandemia e que surtam efeito o mais rápido possível para as massas trabalhadoras. A pressão pela realização dessas medidas implica a retomada imediata das mobilizações de massa contra o governo e suas políticas, tirando o movimento dos trabalhadores da inércia e da camisa de força imposta pelo calendário eleitoral e pelo ardil do “frenteamplismo”. Em segundo lugar, é crucial não apenas reverter a pauta política, econômica e ideológico-cultural do golpe, anulando todas as reformas neoliberais, medidas e procedimentos autoritários e fascistas adotados a partir de 2016 e desfascistizando o aparelho de Estado, mas também ir além da democracia de cooptação vigente durante a Nova República e avançar na ampliação de direitos democráticos, sociais e trabalhistas. Ou seja, não se trata de restaurar a Nova República, derrubada em 2016, mas ir além de seus limites políticos e sociais. Em terceiro lugar, ao mesmo tempo é preciso adotar medidas de caráter socialista que garantam aos trabalhadores e suas organizações o controle e a gestão das empresas, bens e serviços sociais públicos vinculados diretamente à reprodução cotidiana de suas condições de vida (saúde, educação, moradia, transporte público etc.) e das empresas privadas incriminadas por corrupção, sonegação de impostos, envolvimento com o crime organizado, etc. A adoção dessas medidas coloca a perspectiva socialista como alternativa real à crise do capitalismo da barbárie, com vistas à superação completa do Estado burguês, da propriedade privada dos meios de produção e das relações capitalistas, e como possibilidade concreta no momento atual da luta de classes. Fundamentalmente, busca deixar claro para os trabalhadores que o capitalismo é irreformável e que sua manutenção implica o avanço da barbárie em todos os planos da vida: social, econômico, político, cultural e ambiental. Por isso, a autonomia política e ideológica do movimento dos trabalhadores e da esquerda socialista diante dos ardis da autocracia burguesa depende não apenas de sua capacidade de organização e mobilização, mas da compreensão do atual momento, da clareza de propósitos e do sentido anticapitalista de suas lutas.
Contrapoder, 10 de fevereiro de 2022