Atropelado pelo voto-castigo, o presidente argentino, Maurício Macri, sofreu uma fragorosa derrota nas eleições primárias que definem os candidatos que disputarão o pleito em outubro de 2019. Das dez chapas postulantes à presidência do país, apenas seis ultrapassaram a cláusula de barreira de 1,5% dos votos. Candidato à reeleição, Macri obteve apenas 32,08% dos votos. Seu principal oponente, Alberto Fernández (Frente de Todos), que tem como vice a ex-presidente Cristina Kirchner, ficou com 47,65% dos votos.
O presidente argentino colheu o que plantou. Diante de tão expressiva diferença (15% dos votos), é bem pouco provável que Macri consiga reverter a desvantagem e ganhar a disputa. Durante seu governo, aplicou uma agenda econômica ultraliberal que mergulhou a Argentina na recessão, na inflação e na degradação social. A aprovação da reforma da previdência, no final de 2017, e o pacto com o FMI, em meados de 2018, aprofundaram a crise econômica, acirrando a crise social.
A reação popular não tardou a acontecer. Macri enfrentou cinco greves gerais e enormes protestos de rua, com destaque para as manifestações contra a reforma previdenciária e as marchas das mulheres pela legalização do aborto. Sua derrota é uma vitória dos trabalhadores, da juventude e dos setores populares que enfraquece a extrema direita em todo o mundo, com destaque para Donald Trump e Jair Bolsonaro, seus apoiadores de primeira hora.
A alternativa Alberto Fernández e Cristina Kirchner não representará uma saída para a crise. Fernández já declarou que seguirá pagando a dívida externa e que buscará uma renegociação, não uma ruptura, com o FMI. Nem ao menos assumiu o compromisso com a aprovação da legalização do aborto. Sua ascensão ao governo será uma infrutífera e perigosa volta ao passado. Mesmos remédios, mesmos efeitos. A desilusão popular provocada pela continuidade da crise econômica e social poderá aplainar o caminho para o fortalecimento de alternativas de direita ainda mais virulentas.
Felizmente, a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade — composta pelos Partido dos Trabalhadores Socialistas, Partido Operário, Esquerda Socialista e Movimento Socialista dos Trabalhadores — conseguiu vencer a barreira mínima de votos e disputará a eleição em outubro. Num cenário extremamente adverso, caracterizado pela forte polarização entre Fernández e Macri e pela consequente pressão pelo voto útil no mal menor, sua chapa presidencial, composta por Nicolás del Caño e Romina del Plá, aumentou sua votação histórica em mais de 700.000 votos, alcançando 2,86% dos votos.
A importância de uma alternativa contra a ordem na disputa presidencial argentina é qualitativa. Sem medo de contrariar os interesses das classes dominantes, seu programa apresenta a única saída possível para a crise: a socialista. Entre outros pontos, a Frente de Esquerda defende: a estatização das empresas privatizadas, sob controle dos trabalhadores e usuários; a proibição das demissões de trabalhadores; a estatização, sob o controle dos trabalhadores, das empresas fechadas; a indexação automática dos salários e das aposentadorias à inflação; o rompimento com o FMI; o não pagamento da dívida externa; a nacionalização do sistema bancário; e o monopólio estatal do comércio exterior [1].
A Frente de Esquerda não alimenta a ilusão de uma solução eleitoral para a grave crise que abala a vida dos argentinos. Ela sabe que o futuro será decidido nas ruas, não nas urnas. Independentemente do presidente de plantão, mais à direita ou mais à esquerda do status quo, sem mudanças estruturais a crise econômica e social se aprofundará. As sementes plantadas durante o processo eleitoral vão germinar e dar frutos nas lutas do próximo período. A consciência de que as soluções que se circunscrevem aos parâmetros do neoliberalismo só produzem barbárie prepara o terreno para soluções que vão além do capital.
A esquerda socialista brasileira deve se inspirar no exemplo da Frente de Esquerda da Argentina. Ao invés de trilhar o caminho da moderação, da perda de identidade ideológica e da busca de alianças com forças comprometidas com o status quo, precisa ter a coragem de mostrar sua cara, diferenciando-se tanto da direita quanto da esquerda da ordem. Para isso, PSOL, PSTU e PCB devem superar sectarismos, evitar a armadilha de falsos atalhos e construir a unidade dos socialistas, lastreada num programa radical, que realmente confronte os problemas do Brasil. A confluência dessas organizações será mais do que a soma das partes, atraindo outros setores e ativistas independentes. A experiência argentina demonstra que isso é possível e traz resultados, mesmo no minado terreno eleitoral.
Notas:
[1] Leia o programa completo da Frente de Esquerda: https://medium.com/@Contrapoderbr/declaração-programática-da-frente-de-esquerda-e-dos-trabalhadores-unidade-argentina-4333b6c8ed61
Contrapoder, 19 de agosto de 2019