A chacina que matou nove jovens que participavam de um baile funk em Paraisópolis deu visibilidade à guerra aos pobres nas periferias das grandes cidades brasileiras. A reação imediata do governador de São Paulo, João Dória, de que a ação respeitou o “protocolo” e de que a política de segurança não mudaria foi um reconhecimento explícito de que a violência contra os desvalidos é uma política deliberada de Estado.
Como se sabe, não é só em São Paulo que a periferia sofre a violência arbitrária da polícia. A brutalidade dos órgãos repressivos contra a população pauperizada é generalizada. Trata-se, na verdade, de um padrão histórico de dominação burguês no Brasil. Com a ditadura militar, os trabalhadores foram definitivamente transformados em “inimigos internos” e as periferias passaram a viver em uma situação de verdadeiro Estado de sítio.
A democracia de cooptação da Nova República não restaurou o Estado de direito para o homem pobre. As favelas permaneceram sob toque de recolher, à mercê de uma polícia com licença para barbarizar e matar. Com o agravamento da crise social, a violência das forças repressoras aumentou. Não por acaso, os agentes responsáveis pela segurança pública brasileiros são os que mais cometem homicídio no mundo, sendo responsáveis, em 2018, pelo assassinato de 6.160 pessoas — quase 10% de todas as mortes violentas que ocorreram no país.
Espaços de resistência e criatividade, independentes dos circuitos da indústria cultural, os bailes funks tornaram-se importantes formas de confraternização e expressão cultural. Eles cantam o cotidiano do povo. É o que explica a vitalidade e o prestígio do baile funk nas periferias. Como nos tempos coloniais, quando o batuque das senzalas incomodava os senhores, a afirmação cultural dos de baixo aterroriza os “homens de bem”. Para a elite aculturada, o baile funk tornou-se uma ameaça.
A necessidade de submeter todas as formas de vida ao controle do Estado acarreta a crescente militarização das periferias. Seguindo a cartilha norte-americana, a pretexto de combater as drogas, o poder público decretou uma guerra sem quartel aos trabalhadores. A periferia foi colocada sob toque de recolher e sua população ficou sujeita ao encarceramento e à violência arbitrária dos agentes de segurança do Estado. A mão invisível do mercado precisa do punho de ferro do poder público.
A renúncia do combate à pobreza requer o reforço do combate aos pobres. É nesse contexto que se deve avaliar o significado do “Pacote Anticrime” enviado pelo Ministro Sérgio Moro ao Congresso Nacional, cuja intenção explícita é acirrar a guerra contra a população periférica como garantia da ordem social. Sua aprovação por ampla margem pela Câmara dos Deputados representou uma importante vitória dos setores reacionários que advogam abertamente a necessidade de uma maior institucionalização do Estado Penal.
Ainda que os deputados tenham retirado do projeto original seus aspectos mais deletérios, como, por exemplo, o excludente de ilicitude, que garantia a impunidade do crime cometido por agentes da segurança pública, a nova legislação representa um forte retrocesso na luta contra a criminalização da pobreza, o encarceramento e a violação dos direitos humanos, penalizando especialmente os jovens pobres da periferia, sobretudo os negros, que são historicamente os mais vulneráveis ao arbítrio das forças policiais.
Não deixa de ser irônico que na mesma semana em que o massacre de Paraisópolis despertou a opinião pública para a necessidade de colocar freios à ação da política militar, parlamentares com longa trajetória de luta pela democracia, de olho no eleitorado conservador, tenham legitimado com seu voto uma lei de caráter inequivocamente reacionário e racista. Melhor teriam feito se, ao invés de buscar enxugar gelo, numa estratégia suicida de redução de danos, denunciassem que a burguesia concebe o trabalhador brasileiro como um “burro de carga”, condenado a trabalhar a vida toda, sem direitos, sem reclamar e sem sequer ter direito à festa.
Não cabe a quem luta por um mundo melhor edulcorar a barbárie capitalista. A tarefa primordial da esquerda socialista é contestar de maneira clara e inequívoca a ordem estabelecida, denunciando as estruturas econômicas, sociais e políticas responsáveis pelo nexo macabro entre desemprego estrutural, crise social, desmantelamento das políticas sociais, criminalização da pobreza, encarceramento em massa e genocídio da juventude pobre. A luta contra a barbárie extrapola as fronteiras do parlamento e do calendário eleitoral. Sem a presença de uma vigorosa intervenção popular, que coloque em cena a classe trabalhadora, é impossível deter a ofensiva política do capital pela institucionalização total do neoliberalismo e sua forma despótica de Estado Penal.
Contrapoder, 09 de dezembro de 2019