A morte da menina Ágatha Félix, de 8 anos, causou indignação. Ela foi atingida nas costas, quando estava com a avó dentro de uma Kombi no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro. O disparo partiu, conforme relatos de parentes e moradores, de policiais militares. Foi a quinta criança vitimada (entre mortas e feridas, são 9) em operações das forças de segurança nas regiões pobres do Estado em 2019. Isso num contexto em que o número de mortos pela polícia, em sua maioria jovens e negros, tem batido recordes: foram 6.220 casos em todo o país em 2018, um crescimento de 47% em três anos, de acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Tudo isso em vão. A ineficácia da política do confronto, praticada há tantos anos, é patente. A violência e a criminalidade persistem, em níveis astronômicos.
Apesar do incremento recente, estimulado pelos discursos “bélicos” de Bolsonaro e Witzel, esse não é um problema novo. Infelizmente, é uma marca da nossa história. O Estado brasileiro foi fundado a partir do extermínio dos povos originários e da brutal escravização dos negros. A forma específica, dependente, do capitalismo aqui desenvolvido implicou um alijamento completo das classes subalternas dos espaços políticos, engendrando um Estado autocrático. Sua palavra de ordem é a contrarrevolução permanente, preventiva, que tem como um dos pilares centraisa violência estatal contra os de baixo.
A guerra aos pobres, portanto, não é uma política de governo. É uma política de Estado, um eficaz mecanismo de controle e dissuasão das “classes perigosas”. Logo cedo, com a proibição da maconha, ela se combinou com a guerra às drogas. Hoje, o combate às substâncias ilícitas é a principal “justificativa” para o terror permanente contra os mais pobres.
A Nova República não fugiu à regra, embora tenha provocado enormes expectativas de mudança. Os governos do PT, seus “melhores frutos”, também não. Lula e Dilma não alteraram o caráter autocrático e violento do Estado brasileiro. Ao contrário, em muitos sentidos, aprimoraram-no. Basta lembrar, entre outros exemplos, que Lula patrocinou a intervenção da ONU no Haiti — um “estágio” para treinar nossos militares para atuar nas favelas e periferias brasileiras — e criou a Força Nacional de Segurança Pública. E que Dilma lançou mão da ocupação militar da Maré em 2014. Além disso, vale mencionar que a população carcerária explodiu ao longo das gestões petistas, passando de 361,4 mil para 726,7 mil detentos entre 2005 e 2016.
Nesse sentido, para enfrentar a mazela da violência, são necessárias mudanças estruturais. Entre elas, a legalização das drogas, que devem passar a ser tratadas como um problema de saúde pública, não de polícia; a desmilitarização das forças de segurança, que devem trabalhar para proteger a população e ter direito à livre organização sindical; o encerramento das operações policiais, baseadas na lógica do confronto, nas favelas e periferias (substituídas por ações pontuais, baseadas em informações de inteligência); o fim dos “caveirões” (voadores e terrestres) e da Força Nacional de Segurança Pública; o combate às milícias, que tiranizam, com o apoio de parcelas do poder estatal, cada vez mais bairros populares; o julgamento dos torturadores e dos responsáveis pelos desaparecidos políticos na ditadura empresarial-militar; o fim do entulho autoritário legado pela ditadura empresarial-militar (tutela sobre o poder público, tribunais militares etc.); a investigação independente e a responsabilização dos assassinos de Ágatha, Marielle, Anderson e de todas as vítimas do Estado; a suspensão do pagamento da dívida, com o direcionamento do dinheiro para programas de obras públicas, saúde, educação e cultura.
Isso só será possível com a mobilização das classes subalternas, tomando as ruas e parando o país, e com a construção de um governo dos trabalhadores e dos setores populares, capaz de quebrar a engrenagem que, em nome do lucro, consome cada vez mais vidas.
Contrapoder, 30 de setembro de 2019