A relação orgânica de Bolsonaro com o submundo miliciano e seu reiterado desrespeito aos valores republicanos são fatores de recorrente instabilidade política. Mas não se trata apenas de que Bolsonaro avilta a política e as instituições. É o aviltamento da política e das instituições que produz Bolsonaros. Sem resolver a causa do problema, é impossível livrar-se de seus efeitos.
Por mais nefastas que sejam, no momento as ameaças de golpe fascista não passam de bravatas. Sem a luz verde do imperialismo, sem o aval da grande burguesia, desgastado pela inoperância de um governo patético, totalmente incapaz de resolver os problemas concretos da população, e na ausência de um núcleo operativo minimamente organizado e consistente, o presidente miliciano não tem a menor condição de articular o golpe fascistóide com que ele e seus filhotes tanto sonham. Terá de governar dentro de marcos legais de um regime político híbrido — nem estado de direito pleno, nem exatamente uma ditadura.
A ameaça totalitária não deve, no entanto, ser subestimada. Há três anos ninguém poderia imaginar que um ressentido deputado do baixo clero do Congresso Nacional, nostálgico dos porões da ditadura, pudesse chegar à presidência da República. A adesão do presidente miliciano ao “acordão nacional” é meramente tática. Sem abrir mão das benesses da ordem, o capitão do mato conspira dia e noite contra as instituições democráticas.
A força de Bolsonaro alimenta-se da monumental descrença da população nos homens, nos partidos e nos métodos da política tradicional. Na ausência de alternativa para o colapso da Nova República, a solução autoritária surge como única saída para o impasse histórico nacional. Se a prepotência boçal do ex-capitão não for repelida, mais dia, menos dia, surgirão os agentes para levá-la a cabo.
A absoluta impotência da ordem estabelecida para conter os ataques à democracia evidencia o avançado estado de decomposição da Nova República. A recorrente apologia da ditadura como solução para os problemas nacionais corrói a autoridade do sistema político, e o abuso sistemático das liberdades democráticas solapa o que ainda resta da frágil democracia. Ao não reagirem aos insultos e aos atropelos à lei, as instituições desmoralizam-se.
Circunscrita ao horizonte do cretinismo parlamentar, liderada pelo PT e seus partidos-satélites, a esquerda da ordem faz uma oposição protocolar e estéril. A ofensiva liberal-autoritária contra os trabalhadores não será derrotada pelo voto. Aferrada a um passado superado, ela desconhece que os golpes contra os direitos dos trabalhadores e contra as liberdades democráticas foram longe demais e são irreversíveis sem uma verdadeira revolução democrática.
Na ausência de uma forte mobilização das massas, é impossível enfrentar as forças que se apoderaram do Estado após a sequência de golpes contra os trabalhadores iniciada pelo ajuste ortodoxo deflagrado por Dilma Rousseff, radicalizado por Temer e levado ao paroxismo por Bolsonaro. Sem um projeto de futuro que questione a solução liberal para a crise econômica, colocando na ordem do dia a urgência de transformações estruturais de grande envergadura para resolver os problemas concretos da população, é impossível mobilizar as massas contra a solução autoritária.
A interrupção da marcha insensata dos acontecimentos vai muito além da urgente deposição de Bolsonaro. Se a crise terminal da Nova República não for superada pela intervenção das forças populares na política nacional, a solução ditatorial tende a se consolidar como único horizonte para fazer face ao descalabro nacional. A abertura de novas avenidas para os trabalhadores passa pela liquidação das bases econômicas, sociais e políticas que sustentam o modelo econômico e político brasileiro. A revolta popular chilena indica o caminho para tirar os trabalhadores do inferno neoliberal selvagem na periferia do capitalismo.
Contrapoder, 04 de novembro de 2019