Quando as massas não estão nas ruas defendendo seus interesses, a burguesia avança sobre seus direitos sociais, ataca a economia popular e entrega o patrimônio público. Como tem sido praxe, os governantes aproveitaram o período de férias escolares e a desmobilização dos trabalhadores para anunciar draconianas medidas de ajuste fiscal, entre as quais se destacam: o aumento das tarifas de transporte público nas principais cidades do país; a decisão de privatizar cerca de 300 empresas públicas em 2020; a suspensão das nomeações e contratações de professores nas universidade federais por um ano; e uma brutal ofensiva sobre a aposentadoria dos servidores estaduais e municipais.
Chama atenção que, entre os estados que tomaram iniciativas de reformar a previdência, estejam vários controlados pelo PT e PCdoB — Piauí, Ceará, Bahia, Rio Grande do Norte e Maranhão. Afinal, até pouco tempo atrás esses partidos tinham se posicionado contra os ataques à aposentadoria dos trabalhadores no Congresso Nacional. O espanto é tanto maior quando se constata que as mudanças propostas pelos governadores seguem, em suas linhas gerais, o mesmo padrão das mudanças neoliberais lideradas por Paulo Guedes e Rodrigo Maia.
Para justificar suas ações, essas autoridades, que no debate público se reivindicam de esquerda, repetiram os mesmos argumentos embusteiros e os mesmos métodos arbitrários que seus próprios correligionários recentemente tinham repelido com veemência nas tribunas do parlamento nacional. A reforma seria uma necessidade incontornável, sem a qual as finanças públicas entrariam em colapso. Não haveria alternativa. É reforma da previdência ou dilúvio.
Os déficits do sistema previdenciário seriam insustentáveis, tornando urgentes medidas amargas para evitar o colapso do sistema. Daí a necessidade incontornável de reforçar a contribuição dos trabalhadores, diminuir os benefícios da população e dificultar o acesso às aposentadorias. O cinismo não poderia ser maior. A aposentadoria estaria sendo liquidada em sua própria defesa.
Atropelando o respeito ao debate democrático reivindicado em Brasília, os governadores “progressistas” têm recorrido a um verdadeiro vale-tudo para enfiar a reforma da previdência goela abaixo dos servidores públicos. A arrogância e a prepotência denunciadas no âmbito federal são olimpicamente replicadas, com estilo próprio na esfera estadual. Bloqueia-se o debate público sobre as verdadeiras causas da crise fiscal, repete-se a repressão implacável dos protestos dos servidores pela polícia militar, adotam-se os mesmos métodos espúrios para garantir a qualquer custo a aprovação da reforma previdenciária exigida pelo grande capital.
A crise fiscal dos estados e municípios é uma realidade objetiva e, sem dúvida alguma, deve ser enfrentada para que os trabalhadores possam ter serviços públicos condizentes com uma vida digna. No entanto, a menos que se incorra em grave distorção da realidade, o problema e sua solução não podem ser reduzidos aos supostos gastos excessivos com o sistema previdenciário. Por mais que as reformas neoliberais cortem as despesas com o sistema previdenciário (e com as políticas sociais de uma maneira geral), seria uma ingenuidade imaginar que tal providência algum dia restabeleceria a capacidade de gasto público.
O verdadeiro objetivo da reforma que vem sendo impulsionada pelos governantes não é sanear o sistema previdenciário, mas desmanchá-lo, transformando-o numa espécie de “Bolsa Velhice”, pois essa é a condição necessária para que a previdência seja transformada num grande negócio para os banqueiros. Para enfrentar os problemas da previdência social seria necessário aumentar substancialmente as fontes de financiamento do sistema, facilitar o acesso de todos os idosos às aposentadorias, elevar progressivamente seus benefícios e garantir sua progressividade — exatamente o contrário do que vem sendo feito.
A fragilidade financeira dos estados e municípios é complexamente determinada por fatores que são deliberadamente omitidos do debate público pelos guardiões da ordem. Em termos conjunturais, o desequilíbrio das contas públicas reflete o efeito desastroso da política de ajuste recessivo sobre a arrecadação fiscal. Em termos estruturais, a crise fiscal reflete basicamente a baixíssima tributação da renda do capital e da plutocracia, o grande peso das despesas financeiras no orçamento público e a absoluta ausência de um padrão sustentável de endividamento do setor público.
Sem abandonar a política econômica recessiva, sem aumentar a carga tributária sobre o capital e sobre os ricos, sem desmontar a ciranda financeira do rentismo e sem revogar a política econômica recessiva, as autoridades públicas ficam reféns do trabalho de Sísifo de impor um ajuste fiscal permanente às custas do completo desmanche das políticas públicas.
Nas circunstâncias extraordinariamente adversas de um capitalismo hermeticamente fechado a reformas sociais, o papel dos partidos que representam a esquerda da ordem não lhes permite ter preocupações com a integridade de seu discurso político. Na oposição, precisam abusar da demagogia para alimentar a ilusão de que representam os interesses dos trabalhadores. No poder, precisam “cair na real” e fazer o que deve ser feito para satisfazer os interesses do status quo, aferrando-se à camisa de força da governabilidade oligárquica e da responsabilidade fiscal.
Em suma, por trás do descarado oportunismo político, existe uma profunda coerência programática do PT e do PCdoB com os interesses estratégicos da burguesia. O compromisso do “campo progressista” com os interesses dos trabalhadores é tático e circunstancial, enquanto seu comprometimento com os interesses burgueses é estratégico e estrutural. É o que explica a relutância sociopática do PT e do PCdoB em levar às últimas consequências as mobilizações dos trabalhadores contra as reformas neoliberais de Bolsonaro, de Temer e de quem quer que seja. Seus compromissos retóricos com os trabalhadores não se sobrepõem à sua inabalável lealdade orgânica com a burguesia.
Presos à armadilha institucional, os trabalhadores não têm esperança de dias melhores. Mobilizados nas ruas, a situação seria outra. É o que se aprende com os estudantes e os trabalhadores que há meses tomaram as ruas do Chile para exigir o fim do neoliberalismo e do pinochetismo. É o que nos está ensinando os trabalhadores do transporte público francês que há meses bloqueiam o projeto de Reforma da Previdência de Emmanuel Macron. É só o povo na rua que derruba a ditadura do capital.
Contrapoder, 20 de janeiro de 2020.