Em crescente efervescência, a América atravessa uma série de protestos e levantes populares. Depois da acachapante derrota eleitoral de Macri no último domingo, que ocorreu na esteira de grandes lutas de massas e das rebeliões das classes subalternas no Haiti, Honduras e Equador, há dez dias o Chile assiste uma tectônica rebelião popular.
Por conta do vigor das manifestações e de seu significado simbólico, o caso chileno tem enorme importância. Pioneiro na implementação do neoliberalismo no continente, iniciada ainda durante a ditadura de Pinochet e mantida pelos governos eleitos após a abertura, inclusive pelos tidos como “progressistas”, o Chile era apresentado até poucos dias atrás como um exemplo de sucesso do Consenso de Washington.
A gota d’água que transbordou o copo, levando milhões de chilenos às ruas, foi o aumento da passagem do metrô, num contexto em que o governo reacionário e elitista de Sebastian Piñera aprofundava o ajuste neoliberal. Entretanto, a explosão popular extrapola a insatisfação com Piñera. São mais de quatro décadas de contradições acumuladas que vêm à tona. A pobreza, a desigualdade, a mercantilização das políticas públicas e a prepotência institucionalizada transformaram a vida do trabalhador chileno num inferno.
Como de costume, o Estado respondeu com violência. Piñera decretou o Estado de Emergência e o toque de recolher. Colocou nas ruas a polícia e o exército e afirmou que o país estava “em guerra contra um inimigo poderoso”. Diante do fracasso de tais medidas para conter os “de baixo”, mudou de tom. Voltou atrás no aumento da passagem e sinalizou com uma agenda social. Ao mesmo tempo, manteve as tropas nas ruas. Mais uma vez, foi um fiasco: a maior mobilização registrada até o momento ocorreu após tal recuo, com mais de um milhão de pessoas e a realização de uma greve geral de dois dias (precedida por paralisações de diversas categorias, como os mineiros, os portuários e os caminhoneiros).
O saldo da violência estatal é brutal. De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, até o momento, já são 42 mortos, 121 desaparecidos, 584 feridos e 2600 presos. Além disso, há inúmeras denúncias de tortura e de abuso sexual de manifestantes detidos. Alguns, inclusive, foram “crucificados” pelas forças de segurança em antenas de televisão.
As manifestações surgiram de forma espontânea, com um programa difuso. Gradativamente, foram assumindo bandeiras mais definidas, como: o fim do modelo econômico neoliberal e a anulação das privatizações realizadas nas últimas décadas; a superação da Constituição de 1980, com a realização de uma Assembleia Constituinte; a retirada das tropas das ruas; o fim da repressão, do Estado de Emergência e do toque de recolher; a punição dos responsáveis pelas violações dos Direitos Humanos e a liberdade dos presos políticos; e o “Fora Piñera”. Há um claro potencial revolucionário nos protestos em curso. Não se reivindicam mudanças dentro da ordem, mas a mudança da ordem.
Infelizmente, as principais organizações políticas e sindicais do país, como a Frente Ampla e a CUT (Central Unitária dos Trabalhadores), apostam num diálogo com o poder estabelecido como solução para a crise política aberta pela revolta popular, ao invés de apontar para a construção de mudanças estruturais, que só podem ser viabilizadas com a continuidade dos protestos e por um governo dos trabalhadores e dos setores populares. Isso pode esvaziar o impulso transformador do movimento.
De todo modo, independentemente do desfecho do processo, o mito do fim da história está em xeque. O que parecia impossível há poucos dias, tornou-se possível. Chile, Haiti, Honduras e Equador revelam a necessidade histórica de mudanças estruturais. O desafio é transformar a vontade expressa nas ruas em realidade. Para tanto, é preciso construir força política para mudar: um programa alternativo e uma organização que condense a força difusa das manifestações. Há um longo caminho a percorrer. Todo apoio à luta do povo chileno — a mesma luta de todos os trabalhadores latino-americanos!
Contrapoder, 28 de outubro de 2019