O descalabro como política de Estado

Os que apostam na costura de uma frente eleitoral republicana como antídoto à reação neocolonial impulsionada pela burguesia não avaliam corretamente a gravidade do momento histórico. E, no entanto, são gritantes as evidências de que as instituições políticas e jurídicas da Nova República apodrecem e que a política de terra arrasada é um imperativo do capital.

Tratados como um mal necessário para recolocar o país na trilha da ordem e do progresso, Bolsonaro e seus asseclas têm luz verde dos donos do poder para ameaçar as liberdades civis, roubar dinheiro público, aparelhar as instituições, desmantelar as políticas públicas e desorganizar o pouquíssimo que ainda resta de conteúdo nacional e democrático do Estado brasileiro. Na última semana, a turma do ex-capitão pintou e bordou.

A pantomima encenada pelo Secretário da Cultura, Roberto Alvim, travestido de Joseph Goebbels, ameaçando os brasileiros com uma política cultural de Estado submetida à vontade do chefe, resultou, após grande hesitação do presidente, em sua disfarçada exoneração, como se tudo não tivesse passado de extravagância inesperada de um personagem bizarro. Ninguém responsabilizou Bolsonaro institucional e politicamente pela gravidade das ameaças, como se o imbecil que se fantasiou de nazi não tivesse sido escolhido a dedo para fazer exatamente o que fez.

O Secretário de Comunicação Social, Fábio Wajngarten, que trabalha no Palácio do Planalto, pego com a boca na botija desviando recursos públicos para o próprio bolso, continuou incólume no comando da propaganda oficial do governo federal. A escancarada promiscuidade entre o público e o privado não foi suficiente para que o Ministério Público Federal tomasse alguma providência. Os vestais da Lava Jato, evidentemente, se fingiram de mortos. O rapaz continua firme e forte no palácio conspirando dia e noite.

A briga pública entre o Presidente da República e seu Ministro da Justiça pelo controle da Polícia Federal, escancarando o interesse de utilizar o órgão como meio de proteger apaniguados e perseguir desafetos, foi transformada em disputa política normal entre adversários potenciais nas eleições de 2022. A complacência do establishment com a falta de decoro e a desfaçatez de Bolsonaro e Moro, em gritante contraste com o rigor que muito há pouco justificou a deposição de Dilma Rousseff por ter atropelado a vírgula da lei, dá a dimensão da magnitude da licença ética dos novos governantes do Brasil.

A bagunça do ENEM 2020, lambança previsível quando se considera que o governo Bolsonaro mudou cinco vezes a direção da instituição responsável pela prova, não redundou na demissão sumária do energúmeno que preside o Ministério da Educação. E a nomeação de um criacionista para cuidar da CAPES não despertou a indignação de burgueses ilustrados. Em frontal contradição com a retórica liberal, a hostilidade e o descaso com a pesquisa, a ciência e a educação respondem a uma política de Estado. Premida pela necessidade de suprimir qualquer vestígio de projeto nacional, a burguesia mobiliza o ressentimento, a ignorância e a pura e simples incompetência para liquidar o que ainda resta do precário sistema de pesquisa, ciência e educação montado com muito sacrifício ao longo da história.

Depois de uma semana assustadora, Lula — a grande referência de quem procura construir uma grande resposta eleitoral à onda reacionária — concedeu longa entrevista a um jornal de grande circulação de São Paulo. Ficou na epiderme dos fenômenos. Parece ignorar a gravidade da crise nacional. Bolsonaro foi tratado como adversário político que precisa “parar de falar bobagens”, e não como portador de um projeto de país inaceitável — o desmanche da Nação como projeto burguês. Certamente, não será no conchavo da pequena política que a ofensiva reacionária será derrotada. Longe da crítica radical e fora das ruas, os trabalhadores amargarão um longo inverno.

Contrapoder, 27 de janeiro de 2020

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