Com o assassinato de Francisco Sales, no Maranhão, chegam a 25 os mortos por conflito de terra na Amazônia em 2019. A escalada da violência contra lideranças populares e indígenas comprometidas com a defesa do território e da floresta é consequência direta do avanço do capital sobre as riquezas naturais (1). Sabe-se de longa data quem são as vítimas e quem são os algozes. Os que morrem são homens pobres: trabalhadores rurais, sem terra, seringueiros, ribeirinhos, pequenos agricultores, quilombolas, populações tradicionais e indígenas. Os que mandam matar são homens ricos e poderosos em busca de fortuna: grileiros, fazendeiros, madeireiros, garimpeiros, grandes mineradoras e hidroelétricas.
A responsabilidade direta pelo recrudescimento da violência na Amazônia é de Bolsonaro. As declarações racistas contra os indígenas, a ostensiva hostilidade contra os desvalidos da terra e o desmanche das instituições públicas de proteção do homem e do meio ambiente, que desvirtuam as funções constitucionais da FUNAI e do IBAMA, deixam a população que vive no campo, sobretudo os povos da floresta, à mercê da sanha predatória de empresários inescrupulosos em busca de grandes e pequenos negócios. O objetivo evidente é quebrar toda e qualquer resistência à exploração do trabalho e da natureza. A Amazônia foi oferecida de bandeja pelo presidente da república ao grande capital, internacional e nacional.
Mas a brutalidade no campo não pode ser reduzida ao reacionarismo e ao entreguismo de Bolsonaro. A questão agrária é um problema estrutural. O papel estratégico do latifúndio como base do padrão de acumulação e dominação da sociedade brasileira bloqueia qualquer possibilidade de democratização do acesso à terra e, como consequência, condena o campo à barbárie. A grande empresa agrícola e o extrativismo mineral implicam necessariamente a guerra genocida contra os povos da floresta, porque o caráter predatório da agricultura e da mineração voltada para a produção de mercadorias destinadas ao mercado mundial exige que a terra esteja sempre à disposição do capital. O desenvolvimento do capitalismo nas regiões de fronteira desdobra-se como uma colonização permanente.
É um equívoco imaginar a violência no campo como um resíduo anacrônico que seria superado com o avanço do progresso. No Brasil, o progresso avança como modernização do arcaico e arcaização do moderno. É o que está ocorrendo. Ao transformar o Cerrado e a Amazônia nas principais frentes de expansão dos negócios, a especialização regressiva da economia brasileira na divisão internacional do trabalho, que ganhou forte impulso com a adesão do Brasil ao Consenso de Washington nos anos noventa, revitalizou o latifúndio e, como consequência, acirrou o conflito pela terra.
Nos últimos 33 anos, a Comissão Pastoral da Terra registrou 1.468 casos de conflito no campo, que acarretaram a morte de 1.940 pessoas no Brasil. A cumplicidade do Estado com o latifúndio fica evidente quando se constata que apenas 8% desses casos foram julgados pela Justiça, resultando na condenação de 101 pistoleiros e apenas 34 mandantes. Com o aprofundamento do processo de reversão neocolonial, a tendência é de escalada da tensão no campo. Ao longo da última década, o número de pessoas que passaram por despejos, expulsões, ameaças de retaliação, bens destruídos e agressões de milícias armadas aumentou continuamente, alcançando, em 2018, 960 mil cidadãos, um aumento de 72% em relação ao ano de 2010.
Por mais paradoxal que possa parecer, o recrudescimento da violência no campo veio acompanhado de um progressivo abandono da política de assentamento de trabalhadores sem terra. Qualquer que seja o indicador — número de decretos para fins de reforma agrária, área desapropriada, número de famílias beneficiadas, número de terras indígenas homologadas -, o quadro é inequívoco. A partir do segundo governo Lula, a política de mitigação do conflito no campo foi gradativamente desidratada. Na administração Dilma, ela já praticamente inexistia, tendo chegado a zero na gestão Temer (2). A eliminação do Ministério do Desenvolvimento Agrário por Bolsonaro formalizou o desamparo, liquidando qualquer vestígio de política de assistência e proteção (ainda que com medidas meramente compensatórias) à população que vive no campo. Não surpreende que a concentração fundiária — a mais alta do mundo — tenha aumentado consideravelmente (3).
A intensificação da violência é impulsionada pelo agravamento da questão agrária. O problema fundamental reside na permanência do campo como um imenso reservatório de homens pobres que sobrevivem em condições de extraordinária precariedade material. De acordo com o IBGE, aproximadamente 33 milhões de pessoas vivem na área rural, população equivalente à venezuelana (4). Desse total, cerca de 1/3 vive em condição de pobreza. Nas regiões do Norte e Nordeste, a pobreza atinge cerca de 40% dos rurais. O problema está associado à perpetuação do latifúndio, do subemprego e da baixa remuneração do trabalho. A correlação entre agronegócio (latifúndio) e superexploração do trabalhador fica patente quando se leva em consideração que o rendimento médio per capita rural é quase três vezes inferior ao urbano (5).
A escalada da violência no campo explicita o rotundo fracasso do último ciclo de luta pela reforma agrária. A fome insaciável por terras não permite solução civilizada para a questão agrária. Os antagonismos entre “terra de trabalho” e “terra de exploração” são irredutíveis.
Os que tombaram no caminho não serão esquecidos. Os crimes da burguesia e seus lacaios não têm prescrição. A força mística dos mortos impulsiona a luta dos vivos. Mas para que a história não se repita como um círculo vicioso macabro, é preciso tirar lições da derrota. Ao desvincular a luta pela terra da luta pela revolução brasileira, a campanha pela reforma agrária ficou enquadrada nos marcos da ordem. Como o capitalismo selvagem funciona como um circuito fechado, que não abre brecha para a mudança social, resolver a questão agrária exige ir além do capital.
1 — Todas as informações sobre conflito de terra são oriundas dos registros da Comissão Pastoral da Terra.
2 — Verano, T.C., Gosch, M.S, e Figueiredo, R.S. “Assassinatos no campo e reforma agrária: uma análise estatística e espacial do período de 1995 a 2017”. In: Conflitos no Campo no Brasil 2017. Goiânia. CPT Nacional, 2018.
3 — De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, 1% das propriedades agrícolas ocupa quase metade da área rural do Brasil. Entre 2006 e 2017, essas propriedades, maiores de 1.000 hectares, passaram de 45% para 47,6% do total das terras. Em contrapartida, os estabelecimentos com menos de 10 hectares, 50,2% do total, ocuparam apenas 2,3% do território rural.
4 — As pessoas diretamente envolvidas na questão agrária são provavelmente mais que o dobro, pois o critério de classificação do IBGE não considera como sendo “rurais” as pessoas que vivem em municípios de menos de 5 mil pessoas, mesmo elas tendo uma dinâmica de vida integralmente ligada ao campo — 90% dos municípios brasileiros. Se esse critério fosse adotado, o número de pessoas no meio rural alcançaria 76 milhões — quase toda a população francesa. [http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-03/pesquisa-diz-que-populacao-rural-do-brasil-e-maior-que-apurada-pelo-ibge]
5 — https://www.beefpoint.com.br/desigualdade-cresce-mais-no-meio-rural/
Contrapoder, 24 de dezembro de 2019.