Era das catástrofes e desafios da luta de classes

Os primeiros anos da década de 2020 foram marcados por acontecimentos que parecem demarcar a exaustão de uma época e o prenúncio de uma aceleração histórica de desdobramento imprevisível. Os fatos que abalam a estabilidade do status quo são conhecidos.

A epidemia de coronavírus que deixou o planeta em quarentena por quase dois anos e matou 7 milhões de pessoas aprofundou a crise da economia mundial. A declaração de guerra econômica dos Estados Unidos contra a China acelerou o fim da globalização liberal. A ofensiva da extrema-direita em escala global, cuja expressão máxima foi o inusitado assalto ao Capitólio pelos correligionários de Donald Trump, exacerbou a grave crise política que abala os alicerces da democracia liberal.

A guerra por procuração dos países ocidentais liderados pelos Estados Unidos contra a Rússia na Ucrânia recoloca o risco de um Armagedon na ordem do dia. As provocações dos Estados Unidos em torno do direito da China sobre Taiwan levam a possibilidade de conflito bélico para o coração da Ásia. O genocídio perpetrado por Israel contra os palestinos na Faixa de Gaza, com a cumplicidade explícita dos Estados Unidos, sob o olhar estupefato do mundo, escancara a total falência moral da civilização burguesa. A escalada assustadora da crise ambiental ameaça a própria existência humana no planeta.

Vistos em conjunto, tais eventos confirmam o aprofundamento da crise estrutural do capital. A persistência de um excedente absoluto de capital que sobrevive como zumbi, amparado no poder econômico e político das grandes corporações multinacionais e das potências imperialistas, explicita o esgotamento dos fatores que contrabalançam a tendência decrescente da taxa de lucro. A ausência de novas frentes de expansão do capital deprime os investimentos. Sem aumento na produtividade do trabalho, a economia mundial fica fadada à estagnação.

A discrepância cada vez maior entre a capacidade produtiva instalada e a capacidade de consumo da sociedade, bem como entre a acumulação de capital produtivo e a acumulação de capital fictício – patente na incontrolável hipertrofia da esfera financeira – reforça a necessidade histórica de liquidação violenta de capital em suas diferentes formas. Ao acirrarem a luta de vida ou morte entre a riqueza nova e a riqueza velha, as pulsões destrutivas que condicionam a concorrência intercapitalista são levadas ao paroxismo, reforçando o risco de uma guerra generalizada como último recurso da burguesia para abrir caminho para um novo ciclo de desenvolvimento capitalista.

A crise da globalização baseada na plena liberdade de movimento do capital e na ilimitada mercantilização da vida, fundada no poderio econômico e militar dos Estados Unidos e cimentada na ideologia neoliberal, aprofunda-se. A luta encarniçada pelo controle do mercado mundial e o sistemático rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores fomentam rivalidades nacionais irrefreáveis. A fragmentação da ordem econômica internacional em blocos econômicos antagônicos, polarizados em torno dos Estados Unidos e da China (em aliança com a Rússia), mostra que as contradições entre mundialização das forças produtivas, horizonte global de acumulação de capital e reprodução das relações capital-trabalho ancorada no Estado nacional já não têm mais como ser contemporizadas.

A mudança na correlação de forças econômica e militar que determina a relação entre as grandes potências imperialistas impõe uma nova divisão do mundo. A extrapolação da concorrência pelo controle das fontes estratégicas de matérias-primas e de energias, pelo domínio de mercados estratégicos, pelo monopólio das tecnologias de ponta e pela supremacia da moeda internacional para o terreno das rivalidades nacionais alimenta o xenofobismo, o neomercantilismo e, no limite, a guerra aberta pela terceira divisão do mundo.

Por não ter condições de superar as contradições inerentes ao modo de produção capitalista sem agravá-las logo em seguida, o capital é compelido a recrudescer a ofensiva sobre o trabalho e a natureza. A exploração da força de trabalho e a depredação do meio ambiente são levadas ao limite.

Ao provocar uma mudança qualitativa na composição técnica do capital, a aplicação das novas tecnologias da informação no processo produtivo amplia o abismo entre expansão das forças produtivas e geração de emprego. Ao desequilibrar a correlação de forças entre o capital e o trabalho, a expropriação do conhecimento dos trabalhadores pela revolução algorítmica e a arbitragem salarial em escala mundial solapam qualquer possibilidade de aumentos sistemáticos no salário real. Nessas circunstâncias, a acumulação capitalista divorcia-se totalmente da mobilidade social e prosperidade material dos trabalhadores. O crescimento do subemprego e a ampliação dos empregos precários, de tempo parcial, mal remunerados e informais tornam-se características estruturais do capitalismo de nosso tempo.

O padrão de gasto energético inerente à expansão irrefreável do desenvolvimento capitalista, potencializado nas últimas décadas pela rápida incorporação da Ásia ao estilo de vida ocidental, é insustentável. Os sintomas de que a crise ambiental alcançou o ponto de ebulição são evidentes. Eventos climáticos extremos se repetem cada vez com maior frequência e intensidade, submetendo crescentes parcelas da população mundial ao flagelo das tragédias ambientais, da insegurança alimentar e das migrações climáticas. O aquecimento da terra e dos oceanos, o derretimento das calotas polares e a elevação do nível do mar – sintomas inequívocos de grave desequilíbrio no meio ambiente – em ritmo que ano após ano ultrapassa as estimativas mais pessimistas indicam que os parâmetros do passado já não servem para prever a trajetória futura. É cada vez maior o número de estudos advertindo que a dinâmica que condiciona os eventos climáticos no planeta já pode ter entrado em território desconhecido. A inviabilidade da vida humana na Terra desponta no horizonte como possibilidade tangível.

A impotência do establishment político para mitigar os efeitos avassaladores da crise capitalista sobre a população solapa a legitimidade da democracia liberal. A submissão integral das políticas monetária e fiscal às exigências do “mercado” destitui o Estado nacional da capacidade de fazer políticas anticíclicas. O princípio do Estado mínimo compromete irremediavelmente as políticas públicas. Atado às teias do neoliberalismo fundamentalista, o Estado nacional torna-se definitivamente, e praticamente sem mediações, o quartel-general da burguesia. Esvaem-se os anteparos institucionais que protegem o trabalho da exploração mais despudorada.

O preceito das negociações multilaterais que orientou a globalização liberal faliu. A utilização de relações comerciais, financeiras e econômicas internacionais como arma de guerra instaura o vale-tudo na luta encarniçada pelo controle do mercado mundial. A lei da selva inviabiliza qualquer iniciativa coordenada para o enfrentamento das emergências econômicas, sociais, geopolíticas e ambientais que afrontam a humanidade. O desatino belicista do Estado norte-americano, que busca a qualquer custo preservar seus privilégios na ordem internacional, corrói os princípios básicos que presidem as leis de convivência entre as nações.

O esboço de um ecocapitalismo improvisado como antídoto para a crise ambiental mal camufla a intenção de administrar a catástrofe que se avizinha. Comparadas com a gravidade do problema, as medidas adotadas pelas economias centrais para enfrentar a crise ambiental revelam-se pateticamente tardias e insuficientes. As reuniões anuais da COP são pouco mais que factoides para apaziguar a opinião pública, sem maiores consequências práticas. As metas para diminuição da emissão de gases de efeito estufa são recorrentemente desrespeitadas. As iniciativas para a defesa das florestas remanescentes chocam-se frontalmente com as tendências da divisão internacional do trabalho, que empurram impiedosamente as economias periféricas para o agronegócio e o extrativismo mineral. As medidas para estimular a transição energética, na melhor das hipóteses, adiam a hora da verdade.

Sem superar a contradição fundamental que impulsiona a luta de classes – o caráter particularmente nefasto do capitalismo contemporâneo -, a burguesia está condenada a administrar a barbárie. O acirramento da luta de classes que daí decorre impõe a necessidade de ajustes no padrão de dominação. Como consequência, aprofunda-se perigosamente, mesmo quando sob a fachada da democracia representativa, o caráter autocrático do poder burguês. Os trabalhadores são paulatinamente destituídos dos benefícios da lei e do estado de direito.

Nesse contexto, a contraposição ao fascismo como tábua de salvação da democracia perde eficácia. Na ausência de nexos morais entre as classes sociais, a ordem torna-se privilégio exclusivo da plutocracia. As lutas sociais são criminalizadas. A violência contra os trabalhadores, institucional e privada, é naturalizada. A esquerda anticapitalista é marginalizada do espaço público. O medo-pânico de uma rebelião dos de baixo leva parcelas cada vez mais expressivas da burguesia a buscar soluções abertamente totalitárias. A erosão da legitimidade da democracia liberal reduz progressivamente o contingente de trabalhadores dispostos a defendê-la.

O avanço galopante da barbárie capitalista põe em perspectiva o espectro de mudanças tectônicas em todas as dimensões do modo de ser e produzir que organiza a vida social. Na ausência de uma alternativa democrática para a crise do capitalismo, baseada no princípio comunista da igualdade substantiva e na livre associação dos trabalhadores, a distopia reacionária ultraliberal, que se forja nos laboratórios macabros da ultradireita pelo mundo afora, afirma-se como panaceia para os males de nosso tempo.

Em franca ofensiva ideológica e política, a ultradireita apresenta-se como força antissistêmica. A alienação dos trabalhadores permite que o desespero em relação ao presente e a desesperança em relação ao futuro se transformem em ativos políticos dos setores mais reacionários da sociedade. No ambiente claustrofóbico da ideologia do fim da história, a burguesia consegue a extraordinária proeza de transformar o anarcocapitalismo – o projeto político que encarna os imperativos do capital – em tábua de salvação dos desvalidos.

Para estar à altura do momento histórico, a esquerda anticapitalista precisa enfrentar os desafios de seu tempo. O primeiro passo é reconhecer a absoluta impossibilidade de deter a marcha insensata dos acontecimentos sem uma ruptura radical com a ordem burguesa. Num momento em que transformações radicais se impõem como urgência inadiável, porque tudo que é sólido começa a se desmanchar, é preciso descortinar novos horizontes. A luta pela redenção da humanidade exige uma práxis revolucionária.

Dos escombros do cataclismo provocado pela crise estrutural do capital brotarão a resolução de combater a barbárie e a criatividade para buscar novos rumos para a humanidade. Priorizando o acúmulo de forças na órbita extra-institucional, as organizações comprometidas com o projeto de ir além do capital devem superar a teoria e a prática do parlamentarismo como panaceia para as mazelas do povo. Denunciar a barbárie capitalista, proclamar a bancarrota das soluções institucionais, criar redes auto-organizadas de solidariedade com as vítimas da barbárie, organizar as lutas cotidianas dos trabalhadores, construir o poder popular e descortinar um horizonte de superação do fim dos tempos, indicando a esperança de um outro modo de viver, são as tarefas primordiais para fazer frente ao capitalismo da catástrofe.

2 comentários sobre “Era das catástrofes e desafios da luta de classes

  • 13 de abril de 2024 at 11:03 pm
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    Boa noite companheiros estava lendo com bastante atenção essa matéria, aliás uma excelente exposição e que realmente podemos constatar que a atual conjuntura é assustadora, o nível nefasto da barbárie que nos coloca o capitalismo hoje não nos deixa outra alternativa, se não for a mobilização para fazer a transformação, e é a classe trabalhadora que vai ser o sujeito ativo, massivo e com a rebeldia necessária para fazer essa mudança, porém creio que ainda falta um elemento imprescindível, a consciência de classe em si e para si. Obrigado e seguimos.

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  • 14 de abril de 2024 at 2:06 pm
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    Excelente análise de conjuntura!!!!

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