O balanço dos dois primeiros meses da quarentena como meio de combate ao coronavírus é sombrio. O custo de uma estratégia tardia e hipócrita de mitigação da epidemia, que preserva os remediados do risco de contaminação e expõe os desvalidos a seus efeitos letais, está sendo pago com muito sofrimento e vidas humanas. No final da segunda semana de maio, mesmo antes de a epidemia iniciar sua escalada expansiva, o Ministério da Saúde contabilizava 233,1 mil pessoas infectadas e 15,6 mil mortos. Considerando a forte subnotificação, a realidade aproxima-se mais de algo entre 2,8 e 3,5 milhões de infectados e 30 a 38 mil mortos. No Brasil, a pobreza tem sido inequivocamente a principal causa de comorbidade.
A quarentena brasileira conseguiu atenuar o ritmo de disseminação da epidemia, mas ficou muito aquém do necessário para colocá-lo sob controle. Como consequência, o país entrou na fase de aceleração da curva de expansão da pandemia com o Sistema Único de Saúde já em colapso. Na hora decisiva, a população ficou sem a única política pública efetiva com que poderia contar para enfrentar a ameaça sanitária.
A decisão de expor a maioria da população ao vírus, permitindo que a taxa de contaminação dos infectados ficasse acima de 1, espalhou a doença pelo território nacional. As cenas dantescas de pessoas morrendo sem atendimento nas portas dos hospitais e de saturação da capacidade dos serviços funerários públicos vistas em Manaus serão repetidas pelo país afora. A perspectiva é tétrica.
O Brasil tornou-se o epicentro da pandemia na América Latina e, se a tendência não for revertida, em breve tornar-se-á seu epicentro global. Na ausência de políticas públicas para conter a expansão do vírus, o comportamento da epidemia tende a se assemelhar ao que aconteceria numa colônia de ratos. O abismo entre a proporção de pessoas já infectadas – entre 1,3% a 1,6% da população – e aquela que seria necessária para encerrar o ciclo epidêmico – 70% – dá a dimensão da tragédia em curso.
Diante da expectativa de centenas de milhares de mortes nos próximos meses, epidemiologistas de todos os cantos do mundo têm advertido, estupefatos, para a urgência de medidas que enrijeçam o distanciamento social. Bolsonaro milita em sentido oposto. Boicota sistematicamente a quarentena.
O desmanche do Ministério da Saúde em plena crise sanitária, patente na substituição de dois ministros em menos de um mês, é apenas uma das dimensões da política genocida de imunização de rebanho como solução para a crise sanitária. Incitação à aglomeração, desinformação reiterada, desautorização explícita às recomendações da OMS, desacato aberto às orientações do MS, apagão estatístico, desmoralização e intimidação das autoridades sanitárias, desrespeito ao pacto federativo, asfixia financeira do SUS, procrastinação da transferência de renda aos desempregados e letargia no cumprimento das políticas de defesa da população, com destaque para a ausência de testes em massa, tão necessários para o planejamento das ações do Estado, são algumas das artimanhas utilizadas pelo ex-capitão para sabotar qualquer possibilidade de uma política planejada e coordenada de combate ao coronavírus, baseada em princípios científicos de preservação da vida.
Para além do extravagante trogloditismo do presidente, que espanta qualquer um com um mínimo de decência, o darwinismo sanitário obedece às exigências do capital. Mesmo sob o risco de romper definitivamente todos os nexos morais com as classes subalternas, criando uma dinâmica de luta de classes baseada na guerra total, a burguesia brasileira tem referendado reiteradamente as ações do presidente contra a quarentena.
A reunião de Bolsonaro e Paulo Guedes com mais de 500 empresários, organizada pelo presidente da FIESP, para discutir o fim das medidas restritivas à livre circulação do trabalho e dos consumidores, com a presença de pesos pesados da burguesia brasileira, como representantes do Grupo Gerdau, Votorantim, Vivo, Cosan, JBS, Bradesco, Cargill, Bunge, AmBev, entre outros, revela de maneira inequívoca que a marcha macabra dos acontecimentos está inscrita nos cálculos econômicos e políticos dos donos do poder.
Num momento de aumento expressivo da rejeição de Bolsonaro pela opinião pública, de crescente isolamento parlamentar de seu governo, de forte antagonismo com o STF, em que a hipótese de impeachment começa a ser abertamente discutida pelo establishment, o apoio explícito do empresariado ao presidente é uma perigosa evidência de que a plutocracia estaria disposta a partir para a ignorância, dobrar a meta do golpe e pagar para ver a solução totalitária do ex-capitão para a crise política nacional.
O genocídio sanitário, em nome do lucro acima de tudo e de todos, implica inexoravelmente a violência política. A serpente começa a sair do ovo. Notas públicas e moções de repúdio, admoestações e advertências cívicas, intimidações e ameaças parlamentares, investigações e processos judiciários não serão capazes de deter a marcha ensandecida do capitão-do-mato em busca do poder supremo. Se a burguesia não mudar de opinião, somente o medo à reação popular, impulsionada pela presença dos trabalhadores na luta de classes, será capaz de interromper o curso regressivo dos acontecimentos e evitar o horror do holocausto.
Contrapoder, 18 de maio de 2020.
Excelente análise e muito bem redigida!
Contribui como alerta, esclarece e faz crítica pertinente!
Denuncia arroubos e cumplicidade dos mal intencionados em eliminar parcela dos mais humildes!