Para o conjunto dos trabalhadores, o balanço do governo Donald Trump é desastroso. Para além dos descalabros ambientais, do descontrole da crise sanitária e da eclosão da maior crise econômica e social desde a grande depressão dos anos 1930, o caráter mais nefasto de sua calamitosa passagem pela Casa Branca é sua herança política perversa.
Quatro anos de abuso sistemático do poder da presidência dos Estados Unidos, de reiterada exaltação do racismo e da xenofobia, bem como de incentivo a organizações da ultradireita inspiradas na restauração da supremacia branca deixaram em frangalhos o sistema político norte-americano. A eleição catalisou a crise de credibilidade da democracia liberal.
A denúncia de fraude generalizada na apuração dos votos comprometeu irremediavelmente a legitimidade do presidente eleito junto a uma expressiva parcela da população. O conflito entre democratas e republicanos – os dois partidos que há mais de cento e cinquenta anos monopolizam o poder do Estado – foi levado ao ponto de ebulição.
O assalto ao Congresso Nacional pela turba insuflada por Trump para impedir a investidura de Joe Biden como presidente eleito provocou uma mudança de qualidade na crise do sistema político norte-americano. A guerra fratricida entre os dois principais partidos da ordem pelo controle do Estado evidencia que o sistema político, que já vinha sendo fortemente questionado de baixo para cima por uma população descrente na política e nos políticos, agora também começou a ruir pelo vértice.
Por completa falta de apoio jurídico, parlamentar, militar e, principalmente, empresarial, o ensaio golpista abortou rotundamente. O amadorismo das lideranças que comandaram a insurreição reacionária é a prova cabal de que as condições para a derrubada da ordem não estavam amadurecidas.
A batalha perdida não significa, entretanto, que a ofensiva da ultradireita contra as instituições democráticas esteja encerrada. A ousadia do ataque ao Capitólio e as cenas épicas da massa enfurecida tomando a cidadela da democracia americana ficarão para sempre na mística das organizações de ultradireita como fonte de inspiração e exaltação à ação violenta.
Na ausência de uma resposta imediata e implacável das forças comprometidas com a defesa das instituições democráticas, a direita contra a ordem será estimulada a novas aventuras. Se as organizações que comandaram as tropas de choque não forem desmanteladas e os golpistas não forem severamente punidos, como cabe a uma insurreição malograda, Trump, ou qualquer outro psicopata com maior talento para a manipulação das massas e conspiração política, sentir-se-á à vontade para apresentar-se, quando as circunstâncias permitirem, como “fuhrer” das massas.
A julgar pelo que aconteceu nas últimas duas semanas, não há razão para imaginar que a ameaça estrutural da solução autoritária tenha sido dissipada. À exceção das corporações que cancelaram imediatamente o acesso de Trump às redes sociais, privando-o de seu principal instrumento de comunicação com a massa, a reação do establishment político tem sido tíbia e protocolar.
Sem força real para apear o presidente do poder e puni-lo por sua responsabilidade direta e inequívoca no ataque ao Congresso Nacional, o Partido Democrata conformou-se com discursos indignados e sanções simbólicas, que culminaram com o meteórico “impeachment” de Trump poucos dias antes do fim de seu mandato. Esperam com isso impedi-lo de disputar cargos públicos e estigmatizar as alas mais radicais do Partido Republicano. Respondem à ameaça mais grave à democracia desde a Guerra da Secessão com politicagem.
O revés da patética tentativa de golpe de Trump afasta o risco imediato de uma escalada autoritária no centro do sistema capitalista mundial. No entanto, enquanto uma crescente parcela da população se sentir vilipendiada pela incapacidade do “sistema” de resolver seus problemas fundamentais, sempre haverá espaço para o aparecimento do Homem providencial. Afinal, o padrão de acumulação que produz a barbárie requer um padrão de dominação para administrá-la.
Sem a superação das causas responsáveis pelo acirramento da luta de classes – a crise estrutural do capital que impulsiona a barbárie capitalista –, mais tempo, menos tempo, será impossível deter a maré reacionária. Se a polarização da luta de classes colocar em risco os interesses estratégicos do capital, as grandes corporações podem rever sua posição e reconvocar a tropa de choque para o centro do palco.
O novo presidente dos Estados Unidos, um leal porta-voz dos interesses financeiros e produtivos das grandes corporações norte-americanas globais, está muito aquém das exigências do momento histórico. Sem fortes mobilizações de rua exigindo mudanças qualitativas na economia e na sociedade, Joe Biden1 sequer terá condições de realizar o tímido sub-reformismo a que se propõe. Se porventura ultrapassar os limites do status quo neoliberal, será interditado pela máquina do Partido Democrata e pelas engrenagens do Estado norte-americano.
A gravidade do momento histórico não dá margem para tergiversação. O único antídoto seguro contra a ameaça totalitária que ronda os Estados Unidos (e, de resto, toda a humanidade) é a construção de uma força política, ancorada num projeto de sociedade baseado na igualdade substantiva, de perspectiva internacional, que unifique o conjunto da classe trabalhadora em torno da luta extrainstitucional contra o reino da barbárie capitalista. Vencer a tentação de se dobrar à linha de menor resistência, superar o cretinismo parlamentar e construir organizações independentes dos trabalhadores, com capacidade de autodefesa e ações ofensivas revolucionárias, são os desafios primordiais de nosso tempo. Enfrentá-los é o meio de abrir novos horizontes para a crise civilizatória que ameaça a todos e que, no limite, coloca em questão a própria vida no planeta.
a serpente é praticamente a mesma, só troca a cabeca