Ressentidos e frustrados com as falsas promessas de prosperidade econômica e restauração imperial, os norte-americanos irão às urnas no início de novembro para renovar representantes do legislativo e escolher o novo presidente da república. A eleição transcorre em plena crise sanitária, estopim para a maior crise econômica desde 1929, em meio a uma rebelião popular sem precedentes e à mais grave crise política desde a Guerra de Secessão.
Com mais de 210 mil mortes por COVID registradas até o início de outubro, os Estados Unidos, que detêm apenas 4% da população mundial, respondem por 20% dos óbitos provocados pela pandemia no planeta. A tragédia expõe o fiasco do sistema de saúde pública criado por Obama – o Obamacare – e a gestão desastrosa de Trump no combate ao coronavírus. A taxa de mortalidade norte-americana foi seis vezes superior à média mundial. Pobreza e raça foram de longe os principais fatores de comorbidade.
A economia mais poderosa do globo revelou-se particularmente vulnerável aos efeitos da pandemia. No auge da crise sanitária, faltou de tudo. A potência econômica que desperdiçou rios de dinheiro para fazer guerra nas estrelas não dispunha de leitos hospitalares, médicos, enfermeiros, respiradores, remédios, equipamentos básicos de segurança e máscaras para proteger sua população. A contração da atividade econômica foi inédita. No segundo trimestre de 2020, o PIB registrou uma queda anualizada superior a 30%. Desde o início da pandemia, mais de 3,3 milhões de empresas foram fechadas. A expectativa do FMI é que, em 2020, a contração da economia norte-americana fique em torno de 8%, declínio muito superior à média do encolhimento da economia mundial (4,9%).
Os efeitos da crise econômica sobre o mercado de trabalho foram catastróficos. Estima-se que entre março e setembro cerca de 57 milhões de trabalhadores tenham aplicado para o seguro-desemprego. No auge da crise, cerca de 20% da força de trabalho encontrava-se desempregada. Entre jovens, negros e latinos, a taxa de desemprego foi bem superior à média nacional.
A crise do coronavírus desnudou as terríveis contradições acumuladas ao longo de mais de quatro décadas de liberalismo. O avanço da globalização implicou a desarticulação do sistema econômico nacional, comprometendo a autossuficiência material dos Estados Unidos. A absoluta subordinação da política econômica aos imperativos do grande capital deixou a economia à mercê do rentismo especulativo do capital financeiro. Os ataques aos direitos dos trabalhadores e a ofensiva sobre os sindicatos causaram uma drástica redução no nível tradicional de vida dos trabalhadores. O incentivo à concorrência selvagem entre os trabalhadores fez recrudescer o racismo estrutural e o xenofobismo. A destruição do Estado de Bem-Estar Social, provocada pela privatização do Estado e pelo desmonte das políticas públicas, acarretou, como contrapartida, a mercantilização desenfreada de todas as esferas da vida. A produção pela produção e o consumismo desbragado transformaram os Estados Unidos na maior ameaça ao equilíbrio ambiental do planeta. A escalada da concentração da riqueza e do poder levou a desigualdade social ao paroxismo, fazendo aparecer na economia capitalista mais rica do mundo formas de pobreza em grande escala típicas de sociedades pobres e subdesenvolvidas. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, as novas gerações têm uma perspectiva de prosperidade econômica inferior à de seus pais. Nesse contexto, não surpreende que os norte-americanos consumam dois terços de toda a produção mundial de medicamentos antidepressivos.
O primeiro debate presidencial entre os dois representantes do grande capital foi um espetáculo patético. Ignorando olimpicamente as vozes das ruas, Joe Biden – o mais republicano dos democratas –, quando conseguiu falar, limitou-se a defender a recomposição dos mecanismos de governança destruídos por Trump e a restauração do princípio da “racionalidade” no trato da coisa pública. Sua utopia é uma impossível volta ao passado. Donald Trump – o menos republicano dos republicanos – dedicou-se a dobrar as apostas no irracionalismo e, do alto de sua arrogância, instigou a força bruta do Estado e de grupos armados como meio de conter a rebelião popular. Acalenta o sonho de uma solução despótica.
Às renitentes manifestações pelo fim da violência policial e erradicação do racismo estrutural, impulsionadas pelo movimento “Vidas Negras Importam”, Biden responde com evasivas que sugerem ser impossível ir além da miséria do possível. Ruim com os democratas, pior ainda com o desatinado Trump. Exaltando a “lei e a ordem” e instigando a mobilização de milícias para defender a “supremacia branca”, Trump reage ao fim da “paz social” flertando abertamente com a guerra civil.
O abismo intransponível entre o clamor das ruas pela imediata democratização da sociedade e o caráter absolutamente hermético do padrão de dominação norte-americano, controlado com mão de ferro pelos partidos Democrata e Republicano, compromete irremediavelmente a legitimidade do sistema representativo e incentiva a ação direta como meio de ação política.
O acirramento do conflito social tornou os Estados Unidos um verdadeiro barril de pólvora. O pânico de que a rebelião das classes subalternas saia de controle leva importantes setores das classes dominantes a buscar soluções políticas por fora da ordem constitucional. É o que explica a força real que permite a Trump apresentar-se como demiurgo de uma direita contra a ordem.
Apontando a defesa da democracia como o problema central do pleito de 2020, o candidato democrata Joe Biden explicitou o risco de uma ruptura institucional. Trump retrucou afirmando que, na verdade, é o “estilo de vida norte-americano” – o individualismo desenfreado – que está em questão. Considera as liberdades públicas como obstáculo à liberdade individual. É a primeira vez que uma alta autoridade do Estado desvincula explicitamente o destino manifesto dos Estados Unidos de seu papel universal como guardião da democracia.
A menos de um mês da eleição, as pesquisas indicam a probabilidade de uma vitória relativamente folgada do candidato democrata, tanto no voto popular como no colégio eleitoral (este, sim, decisivo). Se as previsões se confirmarem, o mais provável é que, além do presidente, os democratas conquistem a maioria no Senado Federal, o que lhes daria controle absoluto das duas casas legislativas.
No entanto, as incertezas em relação ao comparecimento dos eleitores às urnas e à manipulação da opinião pública pelos meios de comunicação e redes sociais não permitem nenhum prognóstico definitivo. Se a vitória de Biden não for contundente, é quase certa a judicialização do pleito, pois Trump – que dispõe de folgada maioria na Suprema Corte – tem reiterado que, se não vencer, é porque terá havido fraude. A ameaça de deslegitimação do resultado eleitoral, iniciativa inédita na relação de cumplicidade que mantém os dois partidos siameses no poder desde 1854, é um sintoma da grave crise política que ameaça a sobrevivência da democracia liberal mais longeva da era burguesa.
A diferença entre Trump e Biden pode ser resumida nos seguintes termos: ir ao abismo em marcha acelerada ou ir ao abismo em marcha lenta. Qualquer que seja o resultado do pleito, a crise civilizatória que transformou os Estados Unidos no epicentro da luta de classes mundial não será resolvida.
Para os trabalhadores norte-americanos e de todos os países do mundo, a derrota de Trump significaria um importante revés no movimento de ultradireita internacional que ameaça a humanidade. Para os trabalhadores latino-americanos de um modo geral e brasileiros em particular, a saída de Trump seria sem dúvida um alívio. Sem o aval de agentes políticos da metrópole, as lideranças vassalas da periferia teriam de moderar seus apetites macabros. Mas a vitória de Biden não significa uma vitória sobre as tendências autoritárias da burguesia contemporânea. Quando o ritual eleitoral deixa de iludir os de baixo e o Estado de direito se torna uma ameaça intolerável aos privilégios dos de cima, a solução de força, por fora das instituições da democracia liberal, surge como um imperativo do capital.
Sem disputar o futuro, os trabalhadores ficam permanentemente sujeitos à violência extrema, pois, mais dia menos dia, a burguesia forjará os agentes políticos para administrar a barbárie capitalista. Passou da hora de puxar o freio de emergência e interromper a marcha insensata dos acontecimentos. A esperança de dias melhores depende da revolução socialista. É urgente colocá-la na agenda política.
Contrapoder, 05 de outubro de 2020.