O resultado da eleição presidencial norte-americana escancara a exaustão da democracia liberal mais longeva do mundo. Do total de cidadãos com direito a voto, 40% sequer compareceram às urnas por não acreditarem no sistema político. Dos 145 milhões que foram às urnas, quase a metade votou em Donald Trump, que defende o projeto racista e xenófobo de uma direita que atropela as regras do jogo. O restante votou na candidatura de Joe Biden, que representa a restauração do status quo – a globalização liberal – acrescida de pálidas promessas de reforma social.
A suada vitória de Biden não abre perspectiva para uma pacificação dos Estados Unidos, como reafirma o presidente eleito sempre que pode. Pelo contrário, parece ser o prenúncio de um aprofundamento da polarização política. A recusa de Trump em reconhecer a vitória de Biden, alegando fraude eleitoral generalizada, acentua a crise de legitimidade do já combalido sistema político norte-americano e envenena ainda mais o clima político.
A derrota de Trump é, sem dúvida, um alívio para todos que lutam contra o obscurantismo reacionário, mas não interrompe a escalada autoritária. Não obstante o desastre da gestão da crise sanitária e econômica de seu governo, o aumento de sua votação popular em relação a quatro anos atrás, tanto em termos absolutos como relativos, até mesmo entre parcelas do eleitorado negro e latino, revela a força do discurso autoritário entre as massas populares.
Trump não é a causa dos problemas. É apenas uma de suas manifestações perversas. A busca de uma solução autoritária para a crise que há décadas corrói a credibilidade do sistema representativo norte-americano expressa o projeto político da fração mais extremada da burguesia norte-americana. Aterrorizada com o espectro da rebelião social, a ultradireita manipula as frustrações de uma imensa massa de trabalhadores – em sua maioria brancos, ressentidos com o rebaixamento sistemático de seu nível tradicional de vida nas últimas décadas – prometendo a volta de um passado idealizado de segurança econômica, prosperidade material e prestígio social. As massas desesperançadas buscam no líder autoritário compensação para o sentimento de abandono e impotência.
Biden não é, e nem poderia ser, capaz de pacificar o país. A possibilidade de um governo democrata enfrentar as causas dos problemas responsáveis pelo enorme descontentamento social é nula. As minorias que deram substrato popular a sua candidatura – negros, latinos, trabalhadores sindicalizados, comunidade LGBT, etc. – terão suas expectativas frustradas. A esperança de realização de políticas que enfrentem o racismo estrutural, a discriminação dos imigrantes, a desigualdade social, a escalada da crise ambiental e a ausência de políticas públicas é vã.
Biden é parte do problema. Os grupos econômicos que bancaram sua campanha para a Casa Branca comprometem-no com a defesa incondicional dos interesses das grandes corporações, notadamente Wall Street e as indústrias da saúde e educação. Fica, assim, preventivamente bloqueada a possibilidade de superação das causas dos problemas que castigam os norte-americanos – o desemprego, o arrocho salarial, a ausência de um sistema nacional de saúde pública, o endividamento das famílias com gastos em saúde e educação, a crise ambiental.1
Mas, mesmo que, pressionado pelas ruas, Biden fosse impelido a levar adiante reformas sociais, suas iniciativas seriam imediata e implacavelmente bloqueadas pelos republicanos, que continuam controlando o Senado Federal e detêm ampla maioria na Suprema Corte de Justiça. O sistema de pesos e contrapesos da democracia norte-americana é desenhado sob medida para que os interesses estratégicos do capital não sejam ameaçados.
No entanto, se a pressão das ruas pela democratização da renda e da riqueza e pelo fim da violência sistêmica contra os negros e os imigrantes fugir ao controle das autoridades, a burguesia ainda tem o recurso de convocar seus cães de guarda. Esta é a funcionalidade do trumpismo. Qualquer ameaça ao individualismo fundamentalista e à supremacia branca mobilizaria a ferrenha oposição de grupos extremistas, muitos deles armados, com vínculos cada vez mais orgânicos com as estruturas do Partido Republicano – organização política cada dia menos republicana e mais envolvida na aventura autoritária.
Enquanto o crescente descontentamento social redundar na recusa de qualquer participação política ou for canalizado para as fileiras dos dois partidos que monopolizam o circuito político norte-americano, a crise do padrão de dominação será administrada pela burguesia sem maiores sobressaltos. A manipulação das paixões que alimentam a falsa polarização entre Democratas e Republicanos é altamente funcional ao grande capital que controla com mão de ferro as estruturas dos dois partidos.
A guerra fratricida entre “liberais” e “consevadores” não deve ofuscar a compreensão de quem são, de fato, os inimigos do povo. Ao jogar os trabalhadores uns contra os outros, explorando perversamente todos os tipos de rivalidades identitárias – raça, gênero, orientação sexual, grau de escolaridade, faixa salarial, acesso a direitos sociais, etc. –, a dominação burguesa bloqueia a possibilidade de unidade das classes subalternas contra as classes dominantes. É o papel ideológico do pós-modernismo.
O resultado da eleição presidencial norte-americana é, sem dúvida, um passo atrás na marcha para o abismo. Mas, se nada mudar, em quatro anos os Estados Unidos terão dado dois passos à frente. E não faltarão, então, aventureiros falastrões dispostos a ir além de Trump.
O partido das ruas precisa se desvencilhar das amarras dos partidos da ordem. Muito além das diferenças relativas à situação específica de cada trabalhador na estrutura social, todos que vivem do próprio trabalho são, de uma ou de outra maneira, explorados e oprimidos pelo capital. Sem a unidade da classe trabalhadora em torno de um programa de transformação social de perspectiva socialista, que coloque na ordem do dia a urgência da igualdade substantiva e do enfrentamento da crise ambiental, não há solução possível para o avanço galopante da barbárie capitalista.
Contrapoder, 09 de novembro de 2020
Referências
- A campanha de Biden bateu todos os recordes de arrecadação, com a captação de mais de um bilhão de dólares, quase o dobro de seu adversário republicano. Do total arrecadado, 62% foi oriundo de grandes contribuições. https://www.opensecrets.org/2020-presidential-race/joe-biden/candidate?id=N00001669; e https://www.opensecrets.org/news/2020/10/cost-of-2020-election-14billion-update
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