Hipocrisia sanitária

O conflito entre o ministro da saúde e o presidente da República mistifica a estratégia adotada pelo Estado brasileiro para administrar a crise do coronavírus. A diferença entre Mandetta e Bolsonaro não expressa uma incompatibilidade de princípios – o racional e o irracional, o adequado e o inadequado –, mas sim a forma perversa pela qual a política sanitária oficial combina e legitima ações que protegem os privilegiados com iniciativas que jogam todo o ônus do ciclo de imunização sobre a vida dos trabalhadores, sobretudo de seus segmentos mais desvalidos e desinformados.

De olho no cálculo eleitoral, oportunistas de todos os matizes partidários aproveitam a crise para fazer politicagem. Antecipando a tragédia sanitária anunciada, Mandetta repassa o ônus da mortandade a Bolsonaro. Antevendo o impacto desastroso de uma depressão de grandes proporções sobre sua popularidade, Bolsonaro joga a responsabilidade do desemprego e da fome em Mandetta. Os governadores, com a liderança de Dória e Witzel, pegam carona na disputa. A briga de foice entre os abutres do caos federaliza-se. Todos fogem de suas responsabilidades. Com pequenas nuances, são cúmplices do mesmo crime. Pode-se imaginar o pandemônio que nos espera.

O voluntarismo de Bolsonaro em vencer a crise econômica no grito, exaltando a população a continuar trabalhando, é um embuste. A crise já está instalada. Ela será profunda e duradoura. Economistas da Organização Mundial do Comércio (OMC) estimam que a contração do comércio mundial em 2020 será de 32% e que a economia mundial sofrerá uma queda em torno de 10%. Em tal estudo, a economia brasileira cairá mais do que a média mundial. Para 2021, espera-se uma modestíssima recuperação, com expansão de pouco mais de 3%.

Sem testes em massa para identificar e isolar os infectados, sem paralisação de todas as atividades não-essenciais, sem proteção adequada dos trabalhadores essenciais para não expô-los desprotegidos ao vírus, sem plano de contingência para proteger a população aglomerada em favelas, cortiços, prisões, transporte público ou em situação de rua, sem respiradores e leitos de UTIs, médicos e enfermeiros suficientes, sem recursos financeiros para dar suporte ao SUS, sem garantia de segurança econômica e alimentar do conjunto da população, a política de supressão é um grande engodo.

Para a maioria dos trabalhadores, a diferença entre o isolamento esculhambado de Mandetta (e dos governadores) e a supressão seletiva de Bolsonaro é quase inexistente. A confraternização entre Bolsonaro e Mandetta – ciceroneados pelo governador Ronaldo Caiado, que recentemente havia rompido publicamente com o presidente – na inauguração de um hospital inacabado, na cidade de Águas Lindas, é uma metáfora do cinismo e da desfaçatez que reinam nas altas esferas do poder. É preciso não alimentar ilusões. Acima de tudo e de todos, as classes dominantes conciliam suas diferenças sem grandes constrangimentos e se apresentam sempre monoliticamente unidas contra os trabalhadores. Mandetta e Bolsonaro são Bebé com Tomé.

A epidemia de coronavírus dissemina-se por todo o território nacional. De acordo com o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), na última semana de março, as internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave – SRAG – aumentaram em torno de 6,4 vezes em relação ao mesmo período do ano interior. A estratégia de arrefecer o ritmo de difusão do vírus parece não estar dando os resultados esperados.

Mesmo com elevada subnotificação, o número de casos e mortos da última semana está acima do previsto pelos técnicos do Ministério da Saúde. Dados oficiais mostram que a adesão à quarentena alcançou menos de 50% da população, quando sua efetividade para aplainar o crescimento exponencial da doença exigiria ao menos 75% das pessoas em real isolamento.

O relaxamento das medidas de Distanciamento Social Ampliado, anunciado no Boletim Epidemiológico 7 do Ministério da Saúde, deve comprometer ainda mais a capacidade de administração do ciclo de difusão do vírus. Se a supressão seletiva “meia-sola” persistir, o Brasil caminhará para um desastre humanitário de grandes proporções, com a possibilidade, cada dia mais irreversível, de centenas de milhares de mortes.

O caos sanitário agravará a desorganização da produção e acirrará as incertezas. Partindo de cenários econômicos menos catastróficos do que a OMC, pesquisadores da FGV, instituição insuspeita de qualquer propensão crítica, estimam que as medidas práticas adotadas pelo governo são totalmente insuficientes para evitar que o número de desempregados dobre em 2020, alcançando mais de 26 milhões de pessoas, quase 25% da força de trabalho. Mesmo considerando as transferências de renda anunciadas pelo governo federal, a contração da massa salarial sofrerá um colapso de quase 14% neste ano, comprometendo gravemente a já bastante combalida capacidade de consumo das famílias.

Os trabalhadores estão largados à sua própria sorte. Terão de enfrentar a catástrofe sem o amparo de políticas públicas. Não devem marchar docilmente para o matadouro. Para sair desse antro estreito, precisarão se auto-organizar para se defender do flagelo do coronavírus e da fome.

Greve contra o trabalho em atividades não essenciais; greve por condições seguras de trabalho, menores jornadas e melhores salários nas atividades essenciais; greve de aluguel; greve de dívidas; organização de coletivos de trabalhadores nos locais de moradia para assistir aos doentes, alimentar os famélicos e enterrar os mortos durante o período de quarentena são alguns dos desafios que terão de ser enfrentados num futuro próximo. Em meio à barbárie do capitalismo da catástrofe, os trabalhadores terão que dar um salto de qualidade na sua organização política para que possam construir um outro modo de produção e de vida. É socialismo ou barbárie!

Contrapoder, 13 de abril de 2020

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