A impotência do Judiciário e do Legislativo para conter os impulsos autoritários de Bolsonaro evidencia a falência definitiva das instituições. A falta de condições objetivas e subjetivas para a consumação das ameaças golpistas e a inapetência das oposições para levar o impeachment às ruas, único meio de viabilizar a deposição do presidente calamitoso, não permitem que se vislumbre uma solução para o impasse claustrofóbico que envenena a vida nacional.
As lições do último período não deixam margem a dúvidas. A desmoralização da política e a naturalização do descalabro são funcionais ao capital. A instabilidade institucional é aproveitada para “passar a boiada” e pautar a agenda nacional em torno do que realmente importa aos homens de negócios – a ordem e o progresso. Enquanto a ameaça de golpe não for contrabalançada pela presença das massas nas ruas, fica bloqueada toda possibilidade de discussão republicana sobre a desastrosa situação da população e suas possíveis soluções.
O cretinismo parlamentar, que vira as costas para as mobilizações populares e aposta todas as fichas nas eleições de 2022, mal disfarça sua cumplicidade envergonhada com a ofensiva neoliberal. As ameaças de ruptura institucional têm funcionado como cortina de fumaça para ocultar a ofensiva sistemática da burguesia contra os direitos trabalhistas, as políticas públicas e o meio ambiente – os verdadeiros alvos do golpe contra a classe trabalhadora, que começou com o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, foi potencializado durante a República dos delinquentes de Michael Temer, e levado ao paroxismo com a chegada da coalisão militar-miliciana-fisiológica liderada por Bolsonaro.
Na semana em que o conflito entre o Executivo e o Judiciário atingiu o clímax, o presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira, ignorando as manifestações dos trabalhadores e a necessidade de um amplo debate com a sociedade, julgou oportuno, na maior desfaçatez, encaminhar a votação de uma Reforma Administrativa que muda qualitativamente a natureza do Estado brasileiro. Na semana anterior, havia liderado a aprovação de uma nova reforma trabalhista – a segunda em menos de quatro anos –, que deixa o trabalho ainda mais vulnerável às pressões do capital.1
As mudanças propostas na organização do Estado na PEC-32 são um ataque direto contra os servidores públicos, mas, sobretudo, um atentado contra todos os que dependem de políticas públicas. Ao comprometerem irremediavelmente a autonomia funcional do servidor público e subordinarem integralmente a filosofia de organização da administração pública à lógica do Estado mínimo, colocam uma pá de cal definitiva no pouquíssimo que ainda resta de conteúdo social e republicano da Constituição de 1988. Caso aprovadas, institucionalizarão o patrimonialismo corporativo, o apadrinhamento oligárquico e o mandonismo no Estado brasileiro. A intenção explícita das mudanças propostas é submeter formalmente a administração pública tanto às exigências do capital como às engrenagens da feudalização-miliciana do poder.2
Sem alternativa programática para se contrapor ao neoliberalismo desenfreado que arrasa a Nação, a sociedade fica num beco sem saída. Ainda que a ofensiva liberal não tenha cumprido com nenhuma de suas promessas, a promoção da livre iniciativa continua sendo apresentada à opinião pública, sem prurido e sem contraponto, como panaceia dos problemas nacionais.
Pautadas pela agenda liberal e condicionadas por um clima de crescente histeria política, sob a ameaça permanente de sabotagem econômica e intervenção militar, as eleições de 2022 não têm como produzir a redenção dos sonhos perdidos da Nova República. Salvo o alívio inegável que representaria o afastamento de Bolsonaro do Planalto, o pleito não teria nenhuma condição de afastar o risco da ruptura autoritária e menos ainda de mudar os rumos da política econômica.
O impasse gerado pelo velho que resiste à morte e o novo ainda sem força para nascer não permite que se vislumbre um fim para a crise terminal da Nova República. Somente uma intervenção popular, embasada num programa político de ruptura com o modelo econômico e de superação definitiva do entulho autoritário, inspirado na busca da igualdade substantiva, seria capaz de abrir a possibilidade de uma solução civilizada para o impasse histórico que ameaça a sociedade brasileira.
Contrapoder, 24 de agosto de 2021
Referências
- Para um resumo das principais mudanças na legislação trabalhista, ver: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/08/22/nova-reforma-trabalhista-fgts-13-ferias.htm; e https://vermelho.org.br/2021/08/17/radiografia-da-nova-contrarreforma-trabalhista
- Sobre a contrarreforma administrativa proposta pela PEC-32, ver https://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/90517-a-reforma-administrativa-de-guedes-e-bolsonaro