Com a confirmação, pelo plenário do STF, da anulação das condenações de Lula na Operação Lava Jato, o ex-presidente reconquista seus direitos políticos e volta definitiva e plenamente ao jogo político. Sua reabilitação eleitoral é um fato político de primeira grandeza, não apenas porque fortalece a combalida esquerda da ordem, mas também porque interfere diretamente em todo o espectro político, redimensionando posições e redefinindo cenários. A disputa entre bolsonarismo e antibolsonarismo ganha um novo componente, pois sua liderança pode ser exercida por alguém que não pertence à direita da ordem comprometida de corpo e alma com o golpe de 2016 e sua pauta política e econômica.
O favoritismo de Lula nas pesquisas de intenção de voto galvaniza diversas forças políticas, movimentos sociais e parcelas da população, alimentando uma esperança de mudança e de superação da tragédia social na qual o país está metido. No entanto, o Lula reabilitado busca cumprir dois papéis na ópera-bufa dirigida pelas burguesias. De um lado, encarnar o papel de anti-Bolsonaro, reafirmando o legado de conciliação de classes e de certa racionalidade gerencial, em contraposição ao extremismo político e ideológico, acelerado desmonte do Estado e pilhagem sem peias dos recursos naturais e bens públicos patrocinados pelo governo Bolsonaro. De outro lado, ocupar o espaço da direita da ordem e atrair seu apoio diante do deserto de nomes atualmente reinante neste campo político. Faz isto não apenas se dispondo “a conversar com todo mundo”, mas principalmente tergiversando sobre a reversão das “reformas” e a regressão autoritária, até aqui aprovadas em conformidade com a pauta econômica e política do golpe.
Ao comprometer-se em deixar o “acerto de contas” com Bolsonaro para 2022, Lula renuncia a colocar a mobilização de massas pelo impeachment no centro de sua ação política. Com isso se acomoda à perspectiva da direita da ordem e do conjunto do bloco no poder, enquanto a crise econômico-social e a pandemia transformam a vida dos milhões de trabalhadores num inferno cotidiano de desemprego, fome, doença e morte! A continuidade do governo Bolsonaro significa a perpetuação da ofensiva burguesa contra os direitos sociais e políticos dos trabalhadores. Afinal, é preciso “passar a boiada”, com a aprovação das novas “reformas” neoliberais-extremadas exigidas pelo bloco no poder, e restringir o espaço político dos trabalhadores ao mínimo.
A crise nacional é grave e dá margem para tergiversações. A situação dos trabalhadores brasileiros é dramática e se encontra em processo de acelerada deterioração. Não é possível relevá-la em nome da conquista de apoio da direita da ordem para um pleito eleitoral que nem se sabe ao certo se ocorrerá. É ilusão achar que a direita da ordem e o capital permitirão a restauração dos anos gloriosos do petismo, baseados no neoliberalismo moderado e na democracia de cooptação, viabilizados por uma conjuntura econômica internacional que não existente mais. Para reciclar o padrão de acumulação liberal periférico, o neoliberalismo extremado e a democracia restrita precisam ser mantidos e aprofundados!
A adoção de um programa que se limite a operar nos marcos de uma democracia cada vez mais restrita e a defender o papel econômico meramente indutivo do Estado, combinando privatização e presença estatal apenas nos setores estratégicos como simples acionista majoritário, como Lula tem defendido, não atende aos interesses dos trabalhadores e corre o risco, praticamente certo, de, na hora decisiva, ser pura e simplesmente deixada de lado em nome do pragmatismo. A perspectiva popular tem se mostrado crítica e “antissistêmica” desde 2013, demandando a ruptura com a camisa de força neoliberal e a ampliação dos direitos sociais e políticos. A baixa resistência popular ao golpe contra o governo Dilma, motivada pelo estelionato eleitoral, e o voto proletário em Bolsonaro indicam isto claramente. Se Lula aparecer como o “baluarte da ordem” contra a agitação autoritária de ranço fascistoide, como o operador “responsável” de um esquema de poder hostil e impermeável aos interesses do mundo do trabalho como não se via desde a ditadura militar, sua eventual vitória eleitoral será uma vitória de Pirro. E não é de todo disparatado imaginar que, após o vale-tudo da campanha eleitoral, a coalisão conservadora da ordem derreta eleitoralmente diante de outra candidatura da “antipolítica” como Santos Cruz, Moro ou algum “homem de negócios” bem-sucedido! Foi o que acabou de ocorrer no Equador. A falta de apoio entre movimentos e massas indígenas derrotou o candidato do “correísmo”.
As classes subalternas não assistem à tragédia em curso de maneira passiva. Apesar do visível refluxo das lutas sociais durante a pandemia, os trabalhadores têm se mobilizado no plano imediato para enfrentar a fome e a Covid com ações educativas, de solidariedade e autoproteção diante da ausência de Estado e do “salve-se quem puder” do mercado. De maneira indireta e sob inúmeras mediações, a crítica política e social à tragédia nacional está sendo construída na prática, aqui e agora, por cima do institucionalismo e do eleitoralismo das organizações partidárias e sindicais enquadradas na esquerda da ordem. Aos socialistas cabe não só recusar e se contrapor à perspectiva da moderação e da conciliação de classe, mas agir para transformar essa crítica em mobilização de massas e ação política pelo Fora Bolsonaro e Mourão, pela vacinação já, pela quebra de patentes das vacinas, pelo auxílio estatal aos trabalhadores e pequenos empresários. Do contrário, tendem a alternativa de centro-esquerda e acumpliciar-se involuntariamente com a tragédia em curso.
Contrapoder, 22 de abril de 2021