A anulação da condenação de Lula nos processos arbitrários presididos por Sergio Moro repara tardiamente uma injustiça fragorosa, mas em nada contribui para a superação da falência política e institucional gerada pela crise terminal da Nova República. Lula livre para disputar eleições não reverte as consequências desastrosas da operação Lava Jato sobre a credibilidade do sistema político brasileiro, nem os cumulativos atropelos à Constituição que daí decorreram.
A surpreendente reviravolta na posição do ministro Edson Fachin – que passa de principal paladino da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF) a certificador das aberrantes ilegalidades da quadrilha do Paraná contra o ex-presidente – expõe o avançado grau de putrefação do sistema judiciário brasileiro. A redenção de Lula teve como contrapartida a total desmoralização do STF como guardião da lei. A falsa cruzada moralista era apenas cortina de fumaça para perseguir desafetos políticos e impulsionar uma avassaladora ofensiva reacionária.
Se a Lava Jato revelou à sociedade o intestino do sistema político brasileiro – a corrupção sistêmica como forma de controle dos partidos e dos políticos –, os vaivéns do STF expuseram as entranhas do sistema judiciário – a pressão política, militar e empresarial como forma de manipulação descarada dos juízes. Por baixo da toga que deveria simbolizar a razão de magistrados independentes e impolutos, subordinados aos ditames da lei, encontram-se prevaricadores, que traficam com os interesses do povo.
A recepção positiva da reintegração do ex-presidente à disputa eleitoral por parcela significativa da grande mídia – a mesma que achincalhava Lula diariamente – revela que a operação “volta Lula” vai muito além da mudança de partido de um juiz que manipula a interpretação da lei. A reabilitação de Lula não foi uma conquista da luta dos trabalhadores, mas uma manobra da alta oligarquia do Estado, preocupada em dar um mínimo de estabilidade à vida política nacional em face do risco crescente de convulsão social, no contexto de um colossal impasse histórico, no qual o velho (a Constituição de 1988) já não tem como ser restaurado e o novo (a institucionalização da situação neocolonial) não tem força para se afirmar plenamente.
No vácuo gerado pela ausência de uma contrapressão popular, os agentes do Estado – políticos, juízes, procuradores e militares – funcionam como verdadeiras marionetes do capital. A política transforma-se num jogo de cartas marcadas. Quando convém franquear o caminho para uma virulenta ofensiva contra os trabalhadores, as políticas sociais, a soberania nacional e o meio ambiente, a esquerda da ordem é retirada de cena sem cerimônia para que o serviço sujo seja feito com a brutalidade e a rapidez exigidas pelos imperativos do capital. Quando o risco de crise social ameaça fugir do controle, na impossibilidade de uma solução abertamente autoritária, a esquerda cordata, devidamente reeducada para compreender os novos limites do possível, é convocada novamente ao centro do palco, com o encargo de legitimar as maldades consumadas e apaziguar os ânimos da população, a fim de evitar a emergência de uma esquerda contra a ordem. O fundamental é que todo o descontentamento social seja canalizado para o circo eleitoral.
Lula sabe perfeitamente que foi convocado para administrar a barbárie de um arremedo de sociedade nacional em franca reversão neocolonial, que tateia por um caminho sem norte, no fio da navalha entre o autoritarismo aberto e o autoritarismo velado, em busca de uma improvável institucionalização da contrarrevolução reacionária. Em seu primeiro pronunciamento após a anulação de suas penas, o ex-presidente apresentou-se como o pacificador da Nação. Pelo que disse – não guarda mágoa de ninguém – e pelo que não disse – nenhuma palavra sobre a revogação das reformas de Temer e Bolsonaro – pode-se imaginar com relativa segurança como pretende conduzir seu eventual terceiro mandato.
Depois de atenuar os estragos de Fernando Henrique Cardoso, Lula oferece à burguesia seu ainda imenso cacife eleitoral para fazer o rescaldo da destruição inaudita de Jair Bolsonaro. Enquanto sua presença for funcional aos donos da riqueza, o ex-presidente será exaltado como grande estadista injustiçado. Assim que se tornar disfuncional, será imediatamente descartado e vilipendiado. O que vale para Lula, diga-se de passagem, vale para todos.
Num contexto de absoluta falta de perspectiva em relação ao futuro, a reabilitação de Lula pode dar um alento de esperança aos que esperam que a democracia possa ser resgatada pela ação de um homem providencial, mas objetivamente não tem, nem poderia ter, o condão de afastar o espectro do autoritarismo. É impossível sair do pântano puxando-se pelo próprio cabelo. Ao padrão de acumulação de uma economia em reversão neocolonial, baseado no rebaixamento sistemático do nível tradicional de vida dos trabalhadores, na destruição das políticas públicas e na depredação acelerada do meio ambiente, corresponde necessariamente um padrão de dominação autoritário. Sem modificar o primeiro, é impossível evitar o segundo.
A volta de Lula à política nacional dá à burguesia a possibilidade de ganhar tempo, mas, enquanto perdurarem as ilusões de um sebastianismo lulista, tira dos trabalhadores qualquer possibilidade de interromper a reversão neocolonial. Qualquer que seja o próximo presidente, seu raio de manobra para restabelecer a paz social será mínimo. Nas condições de uma profunda crise sanitária, econômica e social, nacional e internacional, a polarização da luta de classes inviabiliza até mesmo um simulacro de conciliação entre o capital e o trabalho.
Antes de apostar todas as fichas numa redenção do lulismo em condições impossíveis, a esquerda socialista deveria preocupar-se em abrir novos horizontes para o enfrentamento da crise colossal que ameaça os brasileiros. Sem disputar o futuro, não há como vencer a contrarrevolução reacionária. O ponto de partida deve ser uma leitura cuidadosa da realidade e uma crítica implacável das responsabilidades do próprio lulismo na tragédia nacional.
O único antídoto efetivo contra a escalada autoritária é a mobilização social e a entrada da classe trabalhadora em cena. Mais do que nunca, a tarefa prioritária da esquerda socialista é construir um programa político, colado nas lutas concretas dos trabalhadores, que coloque na ordem do dia a urgência de “direitos já” e sua necessária consequência: “fim dos privilégios já”. A revolução democrática, baseada na autorganização dos trabalhadores, com um horizonte socialista, é a única alternativa capaz de deter a barbárie do capital no Brasil.
Contrapoder, 17 de março de 2021