“O que eu gosto mais é que toda crise
é cheia de oportunidades”,
Jorge Paulo Lemann, bilionário brasileiro
Os que imaginam que o colapso da saúde pública e a depressão econômica abrem espaço para políticas keynesianas anticíclicas e de bem-estar social equivocam-se rotundamente. O Estado está sendo mobilizado com o objetivo exclusivo de defender o grande capital e preservar os privilégios da plutocracia. Equivocam-se também os que consideram a possibilidade de formação de um governo de “salvação nacional” contra a ameaça totalitária. A luta fratricida pelo controle do Estado entre os representantes da “velha” e da “nova” política em nada tem comprometido a unidade monolítica das classes dominantes contra as classes subalternas.
As aprovações da “PEC do orçamento de guerra” e da “MP da Carteira Verde-Amarela” pelo Congresso Nacional revelam de maneira inequívoca que, independentemente das ríspidas disputas entre os agentes políticos da burguesia, na luta de classes a situação emergencial tem sido muito bem aproveitada para fomentar tenebrosas transações e aprofundar os ataques contra os direitos dos trabalhadores. A agenda liberal não foi abandonada, nem a lógica de pilhagem alterada. No que é essencial para os donos do poder – a defesa do patrimônio acumulado e a valorização da riqueza -, Bolsonaro, Guedes, Maia e Alcolumbre, sob a benção do STF, atuam em uníssono.
Destinado supostamente a dotar o setor público de agilidade, flexibilidade e recursos para enfrentar a crise do coronavírus, o “orçamento de guerra” revelou-se um grande negócio para banqueiros e empresários. Foram poucos, ou praticamente nulos, entretanto, seus efeitos sobre a capacidade dos poderes executivos de reforçar substancialmente suas ações de combate à pandemia e de realizar medidas anticíclicas de sustentação da capacidade de consumo da sociedade, socorrendo os trabalhadores desempregados com políticas de transferência de renda.
A suspensão temporária da camisa de força da Lei de Responsabilidade Fiscal e da chamada “Regra de Ouro” (que proíbe a realização de dívidas para o financiamento de despesas correntes) não significou uma ruptura com o regime de austeridade fiscal que submete o Estado à ditadura da dívida pública. A política social continuará sujeita ao garrote draconiano. O Estado continuará de mãos atadas para fazer políticas de gasto e renda anticíclicas.
Ao bloquear a possibilidade de que as despesas correntes extraordinárias do setor público sejam financiadas pela expansão monetária, a custo zero para o Tesouro Nacional, o “orçamento de guerra” pretende transformar a calamidade pública num grande negócio para os credores do Estado. O poderio econômico do setor público (fiscal, creditício e também monetário) será mobilizado quase que integralmente para atender aos interesses do capital. A possibilidade de comprar ativos tóxicos das carteiras dos bancos e dívidas impagáveis das empresas dá ao Banco Central carta branca para que sua força financeira seja utilizada para socializar riscos e prejuízos dos empresários às custas dos contribuintes.[1]
Ao deixar estados e municípios fora da flexibilização do regime de austeridade, “o orçamento de guerra” aumenta perigosamente a centralização fiscal, abrindo espaço para que a asfixia financeira dos estados e municípios seja utilizada como moeda de troca para acirrar a rivalidade federativa e a luta política que divide a nação. A possibilidade de que as despesas emergenciais sejam financiadas com o remanejamento de receitas vinculadas – um velho desejo dos neoliberais – levará a cortes ainda maiores nas demais áreas que compõem o orçamento social da União.
Por fim, como alertou a Auditoria Cidadã da Dívida, a PEC do orçamento de guerra inclui “mutretas” que entraram de contrabando para beneficiar os bancos e os credores do Estado, sem nenhuma razão plausível que justifique sua presença no rol das providências extraordinárias destinadas a estabelecer um regime fiscal, financeiro e de contratação extraordinário para enfrentar a emergência sanitária e combater a crise econômica. É o caso da legalização da remuneração da sobra de caixa dos bancos pelo Banco Central e da autorização de emissão de títulos da dívida pública para financiar as despesas com juros do setor público – operações fraudulentas e indecentes, proibidas pela Constituição brasileira, que há décadas são feitas ao arrepio da lei.
Aprovada na calada da noite pela Câmara dos Deputados, sob o cúmplice silêncio da grande mídia, a Medida Provisória que regulamenta a Carteira Verde-Amarela constitui uma minirreforma trabalhista que altera dezenas de artigos da CLT. A nova modalidade de contratação, voltada para jovens de 18 a 29 anos e trabalhadores acima de 55 anos fora do mercado de trabalho, aproximadamente 25% da força de trabalho, institucionalizará uma nova categoria de superexplorados – trabalhadores de segunda categoria, ultraprecarizados – que durante dois anos poderiam receber até 1,5 salário mínimo, sem uma série de direitos essenciais garantidos pela CLT. O objetivo explícito da medida é elevar a taxa de lucro dos empresários, diminuindo em aproximadamente 1/4 o salário dos trabalhadores e em cerca de 1/3 os impostos e encargos que incidem sobre a folha salarial.
O novo impulso à precarização da relação de trabalho não poderia ser mais inoportuno. No momento em que a economia brasileira enfrenta o espectro de uma depressão sem precedente e de uma crise social dantesca, a Carteira Verde-Amarela é um claro incentivo à rotatividade do trabalho e ao desemprego. Ao invés de garantir a estabilidade do emprego e a renda das famílias, a nova modalidade de contrato é um ato covarde do patronato que, num momento de crise social aguda, agrava a instabilidade e a insegurança das famílias trabalhadoras, acentua o mergulho recessivo da economia brasileira, cuja principal causa é exatamente o colapso na massa salarial, bem como acena com uma sociedade ainda mais desigual no futuro.
A crise do coronavírus acirra a luta de classes. Não haverá compaixão. Para os trabalhadores, não haverá paraquedas nem barcos salva-vidas. O esmero com que o Estado protege o capital e seu absoluto descaso para com o trabalho impedem que se alimente qualquer ilusão em relação à possibilidade de uma solução civilizada para as crises que abalam a vida nacional, sem mudanças profundas nas estruturas da sociedade e do Estado. Construir uma vontade política à altura das exigências históricas é o desafio de nosso tempo. Vencer a barbárie vai muito além de se livrar de Bolsonaro e Mourão. Mas depor o governo genocida do presidente miliciano, de baixo para cima, é, sem dúvida, a tarefa emergencial.
[1] As autoridades monetárias anunciaram a disponibilidade de aproximadamente R$ 2,1 trilhões para socorrer as necessidades financeiras de instituições financeiras e empresas – 26% do PIB. Tal cifra contrasta com a alocação de cerca de R$ 308 bilhões de recursos fiscais extraordinários – aproximadamente 3,8% do PIB – para o combate à pandemia e à crise econômica (montante muito insuficiente para evitar o colapso do nível de atividade – que, segundo a Organização Mundial do Comércio pode alcançar mais de 10% do PIB).