No pântano, crise sem fim

A crise brasileira parece não ter fim, afeta dramaticamente todas as esferas da vida social e avança de maneira desenfreada a cada nova tentativa de estabilização da situação política. A disseminação em escala nacional da variante Delta da Covid-19, num cenário em que apenas 1/5 da população foi completamente imunizada e em que a situação de “normalidade” é imposta de cima para baixo por governos e empresas, promete potencializar ainda mais os já altíssimos índices de contaminação e mortes. Diante da escalada inflacionária, o governo radicaliza sua opção pelo rentismo, aumentando a taxa de juros e desestimulando ainda mais os investimentos produtivos, enquanto “passa a boiada” com tranquilidade, para aplauso de todas as burguesias e da oposição de direita. Depois da privatização da Eletrobrás e da legalização da grilagem de terras, a pauta neoliberal extremada tem em vista a privatização dos Correios, uma reforma tributária que desonera o capital e a classe média, aprofundando a regressividade da estrutura tributária, e uma nova reforma trabalhista, que flexibiliza os contratos do emprego formal e precariza ainda mais as condições de trabalho.

Com a CPI da Covid-19 e os processos contra Bolsonaro no STF e no TSE, além dos editoriais incandescentes, manifestos de repúdio e declarações tão altissonantes quanto vazias acerca do funcionamento das instituições e da robustez da democracia brasileira, os setores dominantes do bloco no poder e a direita da ordem buscam manter o governo sob controle, evitar o golpe autoritário e estabilizar a democracia restrita oriunda do golpe de 2016. No entanto, quanto mais Bolsonaro é pressionado e desautorizado em seus intentos golpistas, mais ele avança na ameaça ditatorial do aparelho de Estado, reforça a simbiose entre governo e militares, paga com juros as sucessivas faturas cobradas pelo Centrão e radicaliza no discurso contra ministros do STF, o sistema eleitoral e a Constituição. Ou seja, quanto mais o grande capital e seus representantes políticos buscam baixar a fervura da crise para cozinhar em banho-maria a execução de sua pauta neoliberal extremada, baseada na ofensiva sobre os direitos e a renda dos trabalhadores, na concentração e centralização capitalista e na apropriação de recursos naturais e bens públicos, mais a temperatura sobe por conta da própria natureza socialmente excludente, economicamente recessiva e politicamente instabilizadora de seu programa econômico.

Na verdade, a crise mostra-se insolúvel porque as duas (contra-)revoluções que a originaram e constituem, a neoliberal extremada e a autoritária, retroalimentam-se, apesar das contradições entre si, num círculo vicioso impossível de superar nos marcos da atual democracia restrita. Num cenário histórico de avanço do capital externo sobre a economia nacional, desindustrialização e reprimarização produtiva – processos que se arrastam desde os anos 90 e se aprofundaram após a crise mundial de 2008 –, a aplicação do neoliberalismo extremado implica não apenas o reforço do rentismo, da regressão colonial e da exclusão social, com tudo o que isso significa em termos de superexploração e precarização do trabalho, redução do mercado consumidor, crescimento da pobreza e acirramento da crise social, mas também alterações significativas na própria correlação de forças entre as frações burguesas e na relação entre Estado e capital. Apesar da predominância inconteste das frações do grande capital associadas ao imperialismo e localizadas no setor financeiro, maiores interessadas na estabilização da democracia restrita, há uma disputa acirrada pela riqueza e pelo poder nos escalões intermediários e inferiores do bloco no poder, com o avanço do agronegócio, do extrativismo, do comércio varejista e de determinados setores prestadores de serviços, que se beneficiam diretamente da privatização de recursos naturais, bens públicos e serviços sociais, da precarização do trabalho e do desmonte das estruturas de fiscalização estatal, muitas vezes transpondo a fronteira entre a legalidade e o crime. Para estas frações, que buscam seu espaço a “cotoveladas”, para além da desregulamentação neoliberal das relações entre capital e trabalho, também de interesse das demais frações burguesas porque fundamental para os novos ritmos de extração de mais-valia, acumulação e concentração capitalista, é crucial neste momento flexibilizar ou mesmo reduzir a capacidade estatal de regular as relações entre os capitais e a hierarquia entre eles, abrindo espaço para sua ascensão. Daí seu apoio à ação disruptiva do governo Bolsonaro e à perspectiva despótica representada pelo bolsonarismo, visível no apoio do Centrão e na presença de diversos representantes destes setores entre os “empresários bolsonaristas”.

Portanto, para além da explosividade que a combinação entre crise econômica, desemprego, redução salarial, empobrecimento e a tragédia da pandemia representa para a situação política, a própria disputa interburguesa torna a crise ainda mais insolúvel, pois não é possível aplicar e executar a pauta neoliberal extremada sem o aprofundamento da transição autoritária, de tendência fascistizante, o que impede a estabilização do regime e o estabelecimento de uma nova hegemonia burguesa. Daí a ineficácia do “morde e assopra” sobre Bolsonaro e a impotência das “instituições”, editoriais e manifestos diante de sua ação disruptiva.

Por outro lado, a esquerda da ordem não consegue cortar o nó górdio da crise burguesa e criar uma alternativa efetiva a essa contradição porque, tal como a direita da ordem, também almeja a estabilização política, com a diferença de que não por meio da consolidação da democracia restrita hoje vigorante, mas sim pela restauração (mesmo que parcial) do que não volta mais: a Nova República e sua democracia de cooptação. E não o consegue ainda porque também carrega uma perspectiva de conciliação de classes que não rompe com os interesses burgueses vigentes; ao contrário, preserva-os e se beneficia da ideologia que domina a consciência dos trabalhadores desde a implantação do projeto neoliberal nos anos 90, que foi mantido pelos governos petistas e aprofundado após o golpe de 2016 e que combina paternalismo, empreendedorismo e fundamentalismo religioso em graus variados. Assim, aos trabalhadores e à esquerda contra a ordem não resta alternativa senão refundar suas práticas organizativas e sua capacidade mobilizatória em torno de uma perspectiva ao mesmo tempo antiautocrática, antineoliberal e socialista, assim como intensificar a luta contra o governo, a democracia restrita e o neoliberalismo extremado nas ruas, escolas, fábricas e no campo. Caso contrário, a derrubada de Bolsonaro ou mesmo do governo inteiro pode representar não mais do que o afastamento momentâneo da ameaça ditatorial.

Contrapoder, 11 de agosto de 2021

Um comentário sobre “No pântano, crise sem fim

  • 12 de agosto de 2021 at 8:28 pm
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    Bom texto! Concordo com a análise e só posso dizer que retrocedemos 30 anos por causa da traição de classe do PT. Por isso, nem Bolsonaro, nem Lula!! Duas desgraças!!
    Sem deixar de construir as bases para o novo, para a evolução da sociedade, que é a superação do capitalismo pelo socialismo.

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