Novos ventos na América do Sul

“Não se detêm os processos sociais nem com o crime nem com a força. (…) A história é nossa e o povo a faz. (…) Muito mais cedo do que tarde, novamente, serão abertas as grandes avenidas por onde o homem livre passará a fim de construir uma sociedade melhor”.
Salvador Allende

Em outubro, os trabalhadores latino-americanos obtiveram duas importantes vitórias políticas. Na Bolívia, a tenaz resistência do movimento de massa, liderado pelo movimento indígena, impôs uma acachapante derrota à camarilha oligárquica-miliciana, que há um ano mobilizou a polícia e o exército para usurpar a soberania popular e depor arbitrariamente Evo Morales da presidência, com o apoio aberto da OEA. No Chile, a heroica revolta da juventude, com arrebatador apoio popular, derreteu o governo plutocrático de Sebastian Piñera e pôs em xeque a Constituição neoliberal imposta pela ditadura de Pinochet em 1980 e mantida, com pouquíssimas alterações, por todos os governos “democráticos” que a seguiram.

Mais que um cheque em branco ao Movimento ao Socialismo – MAS –, a vitória da chapa de Luis Arce e David Choquehuanca na eleição presidencial boliviana, com 55% dos votos, expressa o absoluto repúdio das classes exploradas e oprimidas à violência política instalada pelo governo espúrio de Jeanine Áñez, à tragédia de sua política sanitária genocida, responsável por uma das maiores taxas de letalidade por COVID-19 do mundo, bem como ao aprofundamento do ajuste neoliberal, iniciado, paradoxalmente, pelo próprio Luis Arce  quando Ministro da Economia de Evo Morales.

Não fosse a forte mobilização independente das classes subalternas ter colocado o país à beira da guerra civil, o movimento golpista teria se consolidado. A timidez da oposição do MAS ao “governo de fato” de Áñez e a cumplicidade com sua política sanitária e econômica ficam patentes quando se leva em consideração que, mesmo controlando dois terços do Congresso Nacional, seus deputados e senadores nada fizeram para evitar o descaso com a saúde pública, interromper a ofensiva contra os direitos dos trabalhadores e nem mesmo exigir o fim da perseguição política a seus partidários.

No Chile, a vitória categórica dos que votaram a favor da mudança na Constituição e da convocação de uma Convenção Constitucional eleita pela população expressa o acúmulo de décadas de lutas de estudantes, trabalhadores, indígenas, mulheres e aposentados que desaguaram nas manifestações multitudinárias iniciadas em 18 de outubro de 2019. A decisão do movimento estudantil de pular as catracas do metrô de Santiago para protestar contra o aumento das tarifas desencadeou uma revolta popular sem precedentes – a maior da história chilena – contra o governo de Sebastián Piñera e, sobretudo, contra o modelo econômico e político neoliberal que domina a sociedade chilena há quase meio século.

Não fosse a ousadia e a coragem da juventude, que enfrentou a violenta repressão da polícia e do exército – às custas de milhares de presos (mais de 2.500 pessoas continuam na cadeia), centenas de mutilados (mais de 400 pessoas perderam a visão) e dezenas de mortos (ao menos 34 assassinatos confirmados até março de 2020) –, o Chile continuaria sendo um oásis do neoliberalismo em meio a uma América do Sul conturbada. A necessidade de uma nova Constituição foi imposta à força pelas ruas.

Os partidos signatários do “Acordo pela Paz e pela democracia”, que resultou na lei que convocou o Plebiscito Nacional, todos comprometidos até a medula com o status quo, só cederam à ideia de uma nova Carta Magna quando julgaram que a guerra civil se aproximava. É a primeira vez na história chilena que a Constituição será escrita por uma assembleia eleita diretamente pela população e não por uma comissão de notáveis.

Na Bolívia, a derrota do governo espúrio de Áñez foi, sem dúvida, um triunfo do movimento indígena e da classe trabalhadora, mas a eleição de Luis Arce está longe de ser uma solução para seus problemas fundamentais. Para cumprir suas promessas de campanha – erradicar a fome; promover a industrialização por substituição de importações; garantir a soberania alimentar; cancelar o pagamento da dívida externa; taxar a grande riqueza; e reformar a polícia e o exército –, o novo governo do MAS teria de ir muito além do pálido melhorismo dos anos de Evo Morales. 

Não há atalhos para o modelo do “bom viver” preconizado pelo movimento indígena boliviano. Sem enfrentar as estruturas econômicas, sociais e políticas responsáveis pela perpetuação do poder do imperialismo e de seus vassalos internos não há como vencer o círculo vicioso do subdesenvolvimento que mantém a população na miséria. A mudança no contexto internacional afasta qualquer possibilidade de uma acomodação das contradições pela fuga para a frente. Pelo contrário. Um novo ciclo de crescimento impulsionado pelo boom de commodities está totalmente fora do horizonte de possibilidades. A crise da economia mundial deixa a Bolívia – um enclave mineral na divisão internacional do trabalho – particularmente vulnerável a longos períodos de estagnação econômica.

No Chile, a contundente vitória da Convenção Constitucional no Plebiscito Nacional abre novas perspectivas para o desdobramento da revolta popular contra o neoliberalismo, mas ainda está muito longe de vencer as amarras econômicas e políticas que transformaram o país no paraíso do capital. A lei que materializa o “Acordo pela paz e pela democracia” estabelece uma série de armadilhas para assegurar que a paz seja uma “paz” que não altere a essência do modelo econômico e que a “democracia” permaneça restrita ao reino das grandes corporações e das oligarquias tradicionais, perpetuando indefinidamente o pinochetismo como modelo político.

A cartada das classes dominantes chilenas é “melar” qualquer possibilidade de uma Constituinte realmente democrática e participativa. Primeiro, a escolha dos constituintes será regida pela lei eleitoral vigente, o que favorece de maneira desproporcional os candidatos vinculados aos partidos tradicionais – exatamente aqueles repudiados pela população – em detrimento dos que se vinculam aos movimentos sociais que impulsionaram as manifestações. Segundo, a Convenção Constitucional funcionará tendo como base decisões por maioria qualificada. A maioria de dois terços concede à direita chilena, que tradicionalmente consegue mais de 34% dos votos, direito de veto. Terceiro, a proibição de que a Convenção Constitucional modifique tratados internacionais, uma inacreditável violação da soberania nacional, blinda o modelo econômico de qualquer interferência da vontade popular. Por fim, a convivência dos constituintes com o governo reacionário de Piñera, comprometido de corpo e alma com a velha ordem e completamente desmoralizado perante a população, submete o processo constituinte a pressões espúrias e instabilidades econômicas, sociais e políticas que conspurcam irremediavelmente a possibilidade de um novo acordo social.  

Enfim, a Convenção Constitucional não foi arquitetada pela casta política chilena como uma assembleia livre e soberana, com o objetivo de contemplar as demandas da explosão social que convulsiona a vida nacional, mas como um meio de ganhar tempo à espera de que a fúria das massas seja aplacada e que, ao final, tudo permaneça como dantes. Sem jamais descartar a cartada de uma intervenção militar em nome da lei e da ordem, o establishment político aposta que, com chicanas, intimidações, ameaças, protelações, imposturas e bloqueios, o partido das ruas será fragmentado, desgastado e cooptado até a exaustão completa de suas energias revolucionárias.

A contraofensiva do trabalho está sendo construída no calor das lutas. As vitórias do levante das classes exploradas e oprimidas na Bolívia e no Chile revelam a força da auto-organização dos trabalhadores e da luta extrainstitucional como meio de fugir da linha de menor resistência que condena as classes subalternas a se conformar com estratégias defensivas que circunscrevem o raio de possibilidades à miséria do possível. 

Para não sucumbir às armadilhas da luta institucional, a intervenção popular precisa de saltos qualitativos no grau de consciência e organização das classes que vivem do próprio trabalho. A conquista de novas vitórias supõe a unidade das classes subalternas em torno de um programa comum, que coloque no horizonte a utopia de uma sociedade baseada na igualdade substantiva. Supõe também a construção de organizações políticas que transformem a mobilização social em vontade coletiva, capaz de negar a barbárie capitalista e apontar para modos de viver e produzir que prescindam da exploração do Homem pelo Homem e da relação predatória com a natureza – únicos meios de dispensar a necessidade de aparelhos de dominação de classe baseados na violência do Estado. O acirramento dos antagonismos entre revolução e contrarrevolução coloca na ordem do dia a urgência da construção do poder popular.

Contrapoder, 02 de novembro de 2020.

Um comentário sobre “Novos ventos na América do Sul

  • 4 de novembro de 2020 at 1:58 am
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    “Não se detêm os processos sociais nem com o crime nem com a força.”
    Caramba, essa frase é impertinente, pois o governo de Allende sofreu um golpe militar, Exatamente por não ter lutado por um poder Popular e por não ter armado a classe trabalhadora. Então… Né?

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