O Centrão, o bobo da corte e a tutela militar

A conspiração miliciano-militar contra a urna eletrônica para solapar a legitimidade do sistema eleitoral terminou com o governo Bolsonaro entregue ao Centrão. Na guerra fratricida para definir quem fica com os postos-chaves do Estado, os profissionais da fisiologia ganharam de lavada e desbancaram os generais fanfarrões. 

Acuado pela maré crescente de protestos contra a catástrofe sanitária e econômica, desmoralizado pelas fartas evidências de inépcia administrativa e corrupção, particularmente no Ministério da Saúde, sem apoio do capital nacional e internacional e enfrentando a oposição aberta do departamento de Estado norte-americano, Bolsonaro perdeu o controle do governo e não tem a mínima possibilidade de liderar um golpe de Estado com alguma chance de sucesso. Sem o fantasma do golpe, fica reduzido a bobo da corte, papel que certamente exercerá com grande desembaraço.

No entanto, enganam-se rotundamente os que imaginam que as eleições de 2022 poderão representar um retorno à normalidade democrática. O revés das manobras contra as eleições não significa que a escalada autoritária tenha sido dissipada. Apelos cívicos desesperados, admoestações retóricas contra os atropelos à lei, fé cega nas instituições e manifestações cordatas pedindo respeito à Constituição – como as que têm sido lideradas pelos partidos que compõem a esquerda da ordem – não serão suficientes para tampar a Caixa de Pandora.

O país está atolado no pântano e as instituições encontram-se em pandarecos. A crise da Nova República é terminal e decorre de sua absoluta incapacidade de realizar as promessas cidadãs da Constituição de 1988. O golpe das classes dominantes teve como objetivo eliminar direitos da classe trabalhadora e erradicar qualquer entrave à expansão desenfreada do capital. 

Os que alimentam a ilusão de uma solução pela linha de menor resistência para a crise institucional, sem o enfrentamento de suas causas estruturais, dentre as quais a preservação do papel tutelar das forças armadas na Constituição de 1988, incorrem em dupla irresponsabilidade política. Por um lado, nada garante que o partido miliciano-militar não tente uma quartelada improvisada, de consequências imprevisíveis. Por outro, mesmo que o resultado eleitoral seja respeitado, não há razão para supor que os militares voltarão docilmente aos quartéis. 

Não há nenhuma possibilidade de voltar ao passado. Uma plutocracia que rompeu todos os nexos morais com as classes subalternas e que a cada dia dobra as apostas num modelo econômico ainda mais regressivo e predador não pode abrir mão de seu cão de guarda. A “paz social” dos anos de glória da Nova República ficaram para trás. A burguesia tem uma leitura muito objetiva do acirramento da luta de classes e sabe perfeitamente que não tem como emplacar o novo ciclo de acumulação liberal-periférico sem um padrão de dominação à altura das novas exigências do momento histórico.

Sem a revogação de todos os golpes contra a classe trabalhadora e sem a responsabilização política e criminal de todas as arbitrariedades e ilegalidades cometidas pelos militares desde 1964, é uma ingenuidade imaginar que as forças armadas possam simplesmente dar meia-volta, volver. A “passagem da boiada” requer, como contrapartida inelutável, o espectro da violência política brutal. Sem a dissuasão, a intimidação e a repressão implacável ao protesto social, a reversão neocolonial é simplesmente inviável.

O único antídoto eficaz à escalada autoritária é a mobilização dos trabalhadores, lastreada num programa concreto de enfrentamento imediato dos problemas fundamentais do povo, que coloque na agenda nacional a urgência de mudanças radicais nas estruturas econômicas e sociais responsáveis pela perpetuação das desigualdades extremas e da dependência externa. Sem a derrota política da burguesia não há como deter a marcha galopante para a barbárie. Este é desafio de nosso tempo.

Contrapoder, 27 de julho de 2021

2 comentários sobre “O Centrão, o bobo da corte e a tutela militar

  • 28 de julho de 2021 at 11:44 pm
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    Uma avaliação sintética e precisa. Sem reparos. O último parágrafo, no entanto, põe tudo a perder.
    Como falar da mobilização de trabalhadores se quem os tem submissos é a Cut? Como lembrar da insurreição de trabalhadores com o sindicalismo pelego e as sinecuras que habitam? Só podem estar postando isso de sacanagem

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    • 29 de julho de 2021 at 6:19 pm
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      Precisamos criar novos mecanismos de superação da paralisia sindical. Essa é uma questão central para pensarmos.

      abraços

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