Bastou a juventude indignada ir às ruas para enfrentar os golpistas reacionários e o poder judiciário deixar de prevaricar, para que as enormes vulnerabilidades políticas e criminais de Bolsonaro viessem à tona. Sem base social para impulsionar uma ruptura com a ordem constitucional e sem moral para pedir a intervenção das forças armadas, a chantagem do autogolpe encarnada no ex-capitão tornou-se uma mera bravata.
Bolsonaro enrola-se na corda que ele próprio colocou no pescoço. A prisão de Queiroz explicita sua relação íntima com a corrupção parlamentar e com o submundo da milícia. As evidências de que interfere diretamente na Polícia Federal confirmam que acima do Brasil e de Deus encontram-se os interesses espúrios de sua família. O desbaratamento de seus vínculos com milícias digitais financiadas por empresários comprova sua relação orgânica com fraudes, chantagens, intimidações, ameaças e mentiras deslavadas como arma política. O acerto com os parlamentares do Centrão revela a rendição incondicional ao balcão de negócios da “velha política”.
Ao que tudo indica, a intervenção militar pelo voto deu com os burros n’água. Na inviabilidade do golpe totalitário saneador, Bolsonaro perdeu sua razão de ser. Todos os personagens da farsa ficaram muito aquém de suas pretensões.
A fuga para o exterior de Abraham Weintraub, apavorado diante de sua prisão iminente, é a imagem do “salve-se quem puder” que reina na quadrilha que se aboletou no Planalto. Na hora decisiva, o energúmeno que posava de valentão de tropas de choque fascistas fugiu da raia e foi aproveitar uma boquinha no Banco Mundial.
Considerando o desastre sanitário e econômico dantesco em curso, não é impossível que toda a responsabilidade pelas mortes e pelo desemprego seja depositada pelos donos do poder na conta dos desatinos do presidente miliciano. A burguesia é hipócrita e ingrata. Precisa dar alguma satisfação à população. Se o capitão-do-mato deixar de ser funcional aos donos do poder e se tornar um risco político inadministrável, será imediatamente descartado em nome da ordem, do progresso e dos bons costumes.
A rápida erosão do governo Bolsonaro – o segundo presidente eleito em sequência a derreter antes de completar o segundo ano do mandato – evidencia a profundidade da crise econômica, social e institucional que abala a vida nacional e seus efeitos destrutivos irreversíveis sobre a Nova República. Enquanto as causas estruturais do impasse histórico que tumultua a vida nacional, que se arrasta pelo menos desde as Jornadas de Junho de 2013, não forem resolvidas, a instabilidade política persistirá.
O afastamento do risco de um golpe reacionário é, sem dúvida, um alívio para todos que prezam a importância fundamental do estado de direito. Mas os infortúnios do ex-capitão estão muito longe de representar o fim das ameaças à população brasileira. Enquanto a opinião pública era entretida com o circo em torno da prisão de Queiroz, escondido como rato na casa do espalhafatoso advogado da família presidencial, os poderes executivo, legislativo e judiciário avançavam vorazmente sobre os direitos dos trabalhadores.
A guerra fratricida pelo controle do poder central não arrefeceu a guerra de classe. Formuladas por encomenda pela patronal, as Medidas Provisórias 927 e 936, recém-aprovadas pelo Congresso Nacional, permitem que as empresas reduzam salário, suspendam contratos de trabalho e negociem diretamente os termos da relação trabalhista com os empregados, passando por cima dos acordos sindicais. Paralelamente, o STF denegou uma série de Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs – e sancionou a legalidade da redução de jornada e salário por meio de acordo individual, assim como a terceirização de atividades-fim das empresas. Os precários anteparos legais à superexploração do trabalho sofreram novos reveses.
A acelerada desmoralização de Bolsonaro coloca na ordem do dia o debate sobre sua substituição. A burguesia manobra em busca de uma solução “institucional” – jurídico-parlamentar – calibrada de cima para baixo, sem colocar em questão as bases da solução liberal-autoritária para os problemas do Brasil.
Incapazes de combater os condicionantes estruturais responsáveis pelas frustrações e ressentimentos que alimentam o bolsonarismo, as forças políticas que se alinham em torno da tese da Frente Ampla imaginam que, com o afastamento de Bolsonaro, a normalidade política seria imediatamente reestabelecida. Não compreendem que o dano feito à Constituição de 1988 é irreversível e que, sem disputar o que colocar no lugar da moribunda Nova República, é impossível atender às exigências dos novos tempos.
Para os trabalhadores, o principal desafio é sair da estaca zero. A construção de uma Frente de Esquerda Socialista para enfrentar Bolsonaro e Mourão, sedimentada num projeto político que estabeleça as bases para a completa reorganização da vida nacional, é condição indispensável para que os trabalhadores caminhem em direção a uma solução democrática, construída de baixo para cima, para a imensa crise civilizatória que ameaça o futuro da sociedade brasileira.