O debate interditado

A julgar pelo debate eleitoral nas principais capitais do país, ninguém poderia nem remotamente imaginar que a sociedade brasileira vive a mais grave crise civilizatória de sua história. Afinal, o descontrole da epidemia de coronavírus, a depressão econômica sem precedentes, a escalada do desemprego, o aumento meteórico das desigualdades sociais, a aceleração da degradação ambiental e a crise terminal da Nova República não fazem parte da discussão eleitoral.

Desvinculando os problemas das cidades das questões nacionais e estas da crise do capitalismo que paralisa a economia mundial, o debate eleitoral torna-se um embuste. Ao ocultar os interesses econômicos e sociais responsáveis pela barbárie urbana, os candidatos digladiam-se em torno de soluções moralistas, institucionais e administrativas para contradições que são de cunho estrutural e exigem transformações de grande envergadura.

Na ausência da crítica para desnudar a raiz dos problemas e os nós que devem ser desatados para superá-los, a eleição torna-se um circo. Formatados pela pirotecnia do marketing que rege a política do espetáculo, os candidatos competem desesperadamente para se diferenciarem como “o melhor” gerente da barbárie urbana. O festival de promessas que nunca serão cumpridas, a troca de insultos e acusações, as tiradas retóricas, o elogio em boca própria, a mentira descarada e os truques eleitorais de última hora cumprem a função de banalizar a política e ocultar os interesses econômicos e sociais que de fato definem o caráter das políticas municipais.

O divórcio entre eleição e luta de classes resulta num debate político que circunscreve as alternativas do cidadão a opções binárias que garantem a reprodução do status quo em função das exigências conjunturais da burguesia em cada circunstância concreta. Os representantes da direita vendem a ilusão dos negócios, do assistencialismo fisiológico e da força da autoridade como panaceias para os males do cidadão. Sem negarem a contribuição da livre iniciativa e do assistencialismo, os que se alinham à esquerda da ordem insistem no mito da “intervenção estatal” como meio de conter a gula do capital e atenuar os erros do mercado. Acenam com esquálidos programas sociais como meio de mitigar as enormes carências da população.

Como um museu de grandes novidades, tanto um como outro – que, no passado, se alternaram invariavelmente nos governos municipais – são responsáveis pelos problemas que agora dizem que vão resolver. Desconsiderando as causas dos problemas, a busca de uma solução para os problemas da cidade torna-se uma disputa inglória pela fórmula mágica da quadratura do círculo. 

Entretanto, como democratizar a cidade sem enfrentar os privilégios aberrantes responsáveis pela segregação social e pelo racismo estrutural? Como resolver o problema da mobilidade urbana sem questionar a absoluta primazia do transporte particular, que congestiona as vias das cidades? Como combater a crise ambiental urbana sem pôr um fim ao desenvolvimento capitalista predatório que condena o país a uma posição rebaixada na divisão internacional do trabalho?

Uma coisa puxa a outra. Como universalizar políticas públicas de qualidade sem interditar a mercantilização da saúde, educação, moradia, transporte e água? Como enfrentar a crise fiscal dos municípios sem discutir a crise federativa brasileira? De onde tirar recursos para financiar as políticas públicas sem revogar a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Teto de Gastos? Como libertar a política fiscal dos imperativos do regime de austeridade fiscal sem suspender o pagamento da dívida pública?

A questão urbana é, na verdade, uma questão nacional, que não pode ser desvinculada da luta de classes. É possível resolver o problema da violência na periferia das grandes cidades sem cessar a guerra aos pobres disfarçada de guerra às drogas? Como imaginar a pacificação das periferias sem acabar com a Polícia Militar? Pode-se conceber o fim da Polícia Militar sem colocar em questão as próprias bases do padrão de dominação burguesa no Brasil?

A ilusão de soluções para os graves problemas das cidades brasileiras por dentro da ordem burguesa alimenta a frustração dos trabalhadores com a democracia e seu desalento com a política. É simplesmente impossível superar a barbárie urbana sem enfrentar as corporações que impulsionam os grandes negócios da cidade, sem combater o capital mercantil urbano que controla as concessões dos serviços públicos e especula com a venda de solo urbano, sem confrontar a plutocracia interessada em elevar o muro que a separa do resto da população e o racismo estrutural que lhe corresponde e, em última instância, sem colocar em xeque o controle do capital sobre todos os aspectos da vida. Essas são as questões que devem ser pautadas pelos socialistas nas eleições que se avizinham e que se encontram escamoteadas num debate artificial e mal-intencionado.

Contrapoder, 12 de outubro de 2020.

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