O genocídio indígena e Aruká Juma

A morte do último Juma revela em plenitude a brutalidade de nosso tempo. Com seu desaparecimento, extingue-se um povo e sua longa história de resistência à invasão colonial. Vítima do modelo extrativista minerador, o povo Juma foi dizimado pelo avanço do progresso na floresta, impulsionado pelo capital, com a cumplicidade explícita do Estado brasileiro e sob a absoluta indiferença da sociedade brasileira. Em pleno século XXI, repete-se a tragédia inominável do século XVI. Amoim Aruká, que tinha aproximadamente 90 anos, morreu de Covid-19. Foi contaminado porque a barreira sanitária de proteção aos povos indígenas não foi realizada. Teve uma morte banal. Recebeu “tratamento precoce”. Foi intubado no final de janeiro e faleceu, longe de suas origens, por volta das 9 horas do dia 17 de fevereiro.

Em sua longa vida, Amoim viu o extermínio de seu povo. Estima-se que, no final do século XIX, havia mais de 15 mil jumas na região do rio Purus e do rio Mucuim. Por causa da mineração, das madeireiras e da política forçada de aproximação e “controle territorial”, essa população diminuiu progressivamente para uma centena de pessoas no começo dos anos 40. Pouco se sabe sobre a história dos Juma até 1964, quando houve um massacre patrocinado por comerciantes de sorva e castanha no município de Tapauá (AM), que matou, no mínimo, 60 indígenas. Somente 7 jumas conseguiram escapar do massacre, entre eles Amoim. O período da ditadura civil-militar brasileira foi sinistro para os povos indígenas. Ao menos 8.350 indígenas foram mortos por responsabilidade direta ou indireta do Estado brasileiro.1

A tragédia dos Juma voltou a chamar a atenção nacional em 1992, com a morte do último homem jovem. Em 1998, morreu o último casal, logo após a operação que retirou à força o povo de suas terras, transferindo-o para a cidade e, posteriormente, para a terra dos Uru-Eu-Wau-Wau. Em 2002, restavam apenas cinco remanescentes. Suas terras foram finalmente demarcadas em 2004, mas, por pressão econômica, os últimos jumas só voltaram definitivamente ao território em 2013, ainda que houvesse uma determinação judicial desde 2008 obrigando a FUNAI a fazer a transferência.2

A desoladora história dos Juma e do guerreiro Amoim Aruká não é um caso isolado. Segundo estimativas da FUNAI, em 1500 o território que hoje constitui o Brasil era ocupado por cerca de 3 milhões de pessoas3. Outras fontes calculam uma população de até 10 milhões, distribuída em mais de 1.000 povos.4 O uso premeditado de armas biológicas, o massacre armado e o genocídio étnico-cultural foram políticas de Estado no período colonial e durante o império, tornaram-se oficiosos na República Velha e voltaram a ser prioridade do governo central, ainda que de maneira secreta, com a penetração do grande capital na Amazônia nos anos de chumbo da ditadura civil-militar.5 Apesar das promessas, a Nova República não reparou a dívida com as nações originárias. Pelo Censo de 2010, daquela riqueza humana restam tão somente 256 povos, com uma população total de 817.962 indígenas.

As duas principais garantias da Constituição de 1988 – o direito à terra e à proteção de sua cultura e território – foram sistematicamente negadas. A falta de celeridade nas demarcações, que desde o governo FHC só diminuíram, revela o projeto político de não transformar o direito formal em direito de fato.6 Os reiterados relatos de massacres e de invasão de terras – como os que vitimaram os Guarani-kaiowá, os Guajajara, os Ianomâmi, os Juma e todos que se encontravam em áreas de interesse do capital – evidenciam que a violência contra os povos indígenas é estrutural. 

A história do Brasil permanece presa ao passado colonial.7 Se os povos indígenas estiverem no caminho da riqueza, serão eliminados. Abrindo estradas que ampliam a fronteira agrícola e mineral, fazendo vista grossa às queimadas que matam a floresta, incentivando todo tipo de exploração predatória da natureza, construindo hidrelétricas para viabilizar o extrativismo predatório, caso simbólico de Belo Monte, o Estado autocrático burguês é o principal artífice do genocídio étnico. 

O rebaixamento da posição da economia brasileira na divisão internacional do trabalho, que transforma o país numa megafeitoria moderna, intensifica o genocídio dos povos indígenas. A fome de terra para o cultivo da monocultura de soja e a criação de gado, além da mineração e da exploração dos recursos hídricos, compromete os últimos refúgios dos povos da floresta. A falta de política para defendê-los da crise sanitária e a mudança do marco temporal8, que determina burocraticamente o critério de definição de terra indígena, devem acelerar sua extinção.9

A morte de um ser humano faz parte do ciclo da vida. A morte de um povo é o fim do ciclo da vida. O desaparecimento de uma pessoa é uma tristeza para todos que compartilharam sua existência. A extinção de um povo é uma tragédia irreparável que ameaça a sobrevivência da humanidade. São tradições, conhecimentos, culturas, cosmogonias e memórias que se perdem para sempre.

Na floresta, a relação causal entre capitalismo e barbárie é direta, sem qualquer mediação. A tragédia do povo Juma é a sina de nosso futuro. Na sanha de acumular lucro, a burguesia é capaz de exterminar a humanidade, sem deter as taras do capital. É tarefa de todos os que militam pela emancipação humana invocar a memória do povo Juma e de todos os povos indígenas exterminados. Uma sociedade livre, baseada na igualdade substantiva, sem explorados e exploradores, que respeite a riqueza imensurável da diversidade cultural dos povos e a relação harmônica com o meio ambiente, exige uma ruptura total com o modo de vida e produção do capital, advertência que os povos indígenas nos dão há centenas de anos.

Contrapoder, 23 de fevereiro de 2021

Referências

  1. Relatório da Comissão Nacional da Verdade, Volume 2, texto 5: Violações de direitos humanos dos povos indígenas. ver: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%205.pdf, há também os dados do Relatório Figueiredo, ver: Jornal Estado de Minas: A história que o Brasil escondeu: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&pagfis=7770 e “O relatório Figueiredo e as violações dos direitos indígenas nas páginas do jornal do Brasil (1965-1968) https://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/view/83428/53066
  2. Índios Juma, uma história de abandono e sobrevivência na Amazônia, ver: https://amazoniareal.com.br/indios-juma-uma-historia-de-abandono-e-sobrevivencia-na-amazonia/ e Adaptação é obstáculo no retorno dos juma ao Purus, ver: https://amazoniareal.com.br/adaptacao-e-obstaculo-no-retorno-dos-juma-ao-purus-am-2/
  3. FUNAI: Índios no Brasil. Quem são? http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao?limitstart=0#
  4. Antes de Cabral, Amazônia teve mais de 8 milhões de índios, ver: https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2015/12/1714263-antes-de-cabral-amazonia-chegou-a-ter-10-milhoes-de-indios.shtml?origin=folha, Índios do Brasil, ver: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/indios-brasil1.htm e Quantos habitantes havia no Brasil na época do Descobrimento?, ver: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quantos-habitantes-havia-no-brasil-na-epoca-do-descobrimento/
  5. Cataclismo Biológico – epidemias na história indígena, ver: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/node/53 e Guerras do Brasil.Doc episódio1, ver: https://youtu.be/VeMlSgnVDZ4
  6. Governo Bolsonaro manobra para travar a demarcação de terras indígenas no Brasil, ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-04/governo-bolsonaro-manobra-para-travar-a-demarcacao-de-terras-indigenas-no-brasil.html
  7. Conferência Terra e Água: Listagem da Funai tem 229 terras indígenas a menos que a do Cimi, ver: https://cimi.org.br/2004/11/22508/
  8. Explicações do CIMI sobre o marco temporal, ver: https://cimi.org.br/repercussaogeral/
  9. Panorama geral da Covid-19 APIB, ver: https://apiboficial.org/ e 71% dos indígenas aldeados da Amazônia não foram vacinados contra Covid, indicam dados do governo, ver: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/02/18/71percent-dos-indigenas-aldeados-da-amazonia-nao-foram-vacinados-contra-covid-indicam-dados-do-governo.ghtml

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