A nomeação de André Mendonça para o STF é reveladora da perspectiva política que orienta as forças da ordem na atual conjuntura. Para além de mais um passo no processo de bolsonarização do aparelho de Estado, a aprovação do pastor evangélico pelo Senado para a vaga aberta com a aposentadoria de Marco Aurélio Melo no STF revela que a acomodação com Bolsonaro segue firme, mesmo após a CPI da COVID-19 trazer à luz do dia e provar a enormidade de crimes cometidos pelo presidente e seu governo. Revela também que a transição autoritária em curso desde o golpe de 2016 ainda não terminou, pois segue minando por dentro a legitimidade e a capacidade das instituições republicanas de garantir minimamente as regras do jogo político e impedir a privatização completa do Estado por interesses particularistas. No caso em questão, evidencia-se uma simbiose perigosa entre política e religião, que quebra ainda mais a laicidade do Estado, leva a guerra religiosa em curso no país para dentro das instituições e favorece particularmente o neopentecostalismo bolsonarista, segmento mais reacionário do cristianismo no Brasil.
O voto favorável de senadores da oposição no indicado governista – até mesmo de parlamentares que lideraram a ofensiva da CPI da COVID-19 contra o governo, como Omar Aziz, Alessandro Vieira, Simone Tebet e Eliziane Gama, e de parlamentares do PT, a pedido de Lula − evidencia que a acomodação com Bolsonaro vai muito além do enterro de qualquer possibilidade de impeachment. Isto porque também passa pela viabilização de sua candidatura no pleito de 2022, como indicam a aprovação do auxílio Brasil, a manobra contábil para flexibilizar o teto de gastos e o acerto em torno da PEC dos Precatórios, e pelas “vistas grossas” ao avanço do bolsonarismo sobre o aparelho de Estado, numa tentativa de “normalização” política completamente esquizofrênica diante do descalabro da pandemia, do desemprego, da inflação e da escalada fascistizante. Por razões diversas, porém igualmente oportunistas, tanto a direita da ordem quanto a esquerda da ordem jogam para as eleições o acerto de contas com a catástrofe bolsonarista, contando que elas se realizarão e que a presença do espantalho de Bolsonaro permitirá que, de um lado, se esqueça a responsabilidade de toda a direita no golpe de 2016, em sua eleição em 2018 e sua permanência na cadeira durante todo o mandato, e, de outro, se legitime todo tipo de arranjo conciliatório em nome de sua derrota.
Além disso, a pantomima encenada na sabatina de André Mendonça revela que a força política do neopentecostalismo vai muito além dos interesses corporativos defendidos pela chamada “bancada da Bíblia” no Congresso, pois, além da enorme capacidade midiática e da força eleitoral, as igrejas evangélicas atuam como aparelhos privados de hegemonia em favor da ideologia neoliberal, do conservadorismo sociocultural e do extremismo de direita. A trajetória ascendente do “partido evangélico” começa com os governos do PT, baseada na concessão de cargos, canais de rádio e TV e expansão dos negócios em troca de apoio político e parlamentar, e se intensifica desde o golpe de 2016 com sua adesão orgânica à ofensiva burguesa contra os trabalhadores e sua transformação em um dos pilares da fascistização do país. Seu apoio ao bolsonarismo e ao processo de fascistização do aparelho de Estado vai além do oportunismo de ocasião e se vincula a uma perspectiva identificada com o neoliberalismo, o empreendedorismo e o extremismo de direita por meio da teologia da prosperidade e de uma visão de mundo segregacionista que prega uma guerra religiosa não só contra a ciência, a razão e o pensamento crítico, mas também contra outras denominações religiosas, inclusive cristãs. Além disso, lastreia uma estratégia agressiva de expansão e enriquecimento que, em muitos casos, ultrapassa a fronteira entre a legalidade e o crime e busca mobilizar aparatos e recursos públicos numa guerra religiosa cada vez mais politizada.
André Mendonça chegou ao STF sem qualquer outra mediação que não a condição de representante do neopentecostalismo bolsonarista, condição que ele nunca negou antes ou depois, apesar da pantomima da sessão do Senado que aprovou sua indicação. Pelos próximos 26 anos estará entre os pouquíssimos cidadãos que definem o que é legal ou ilegal, arbitrando sobre todos os assuntos, desde a pauta de costumes até a perseguição de adversários, a proteção de aliados e a entrega das riquezas nacionais para a pirataria globalizada. Caso a Lei da Bengala seja revogada, seu tempo de STF pode cair para 21 anos; no entanto, a bancada bolsonarista nos tribunais superiores poderá crescer enormemente. Antes de terminar o mandato, Bolsonaro ganhará o direito de indicar mais dois ministros para o STF, sete no STJ, incluída a vaga que será aberta com a aposentadoria de Felix Fischer, e três no TCU, incluída a vaga de Ana Arraes. O golpe continua!
Contrapoder, 09 de dezembro de 2021