A revelação do uso de funcionários da prefeitura carioca para hostilizar cidadãos que reclamavam da péssima qualidade dos serviços públicos – “os guardiões do Crivella” – e o afastamento do governador fluminense Wilson Witzel, por suspeita de corrupção, evidenciam o avançado estado de putrefação das instituições republicanas no Rio de Janeiro. O bispo compassivo que prometia cuidar das pessoas revelou-se um truculento brutamontes. O juiz vestal que veio para combater o crime organizado é, na verdade, um aprendiz de ladrão.
Postos em perspectiva, os novos escândalos somam-se aos crimes em série que há décadas submetem o cidadão fluminense ao saqueio de quadrilhas empresárias, com ramificações em todas as esferas do poder público – executivo, legislativo e judiciário. Pegos com a boca na botija, os políticos são achincalhados e submetidos a linchamento midiático, mas o sistema do roubo e do arbítrio não é abalado. Os grupos empresariais que se locupletam nos cofres públicos permanecem ilesos e a população fica largada às traças.
Purgatório da barbárie e do caos, o Rio de Janeiro é o espelho ampliado do Brasil. O eleitor é sistematicamente ludibriado. O sistema eleitoral é feito para impedir que quem depende da venda de sua força de trabalho para sobreviver se reconheça como pertencente à classe trabalhadora. Sem o corte classista, o eleitor fica condenado a escolher “pessoas” e torna-se presa do estelionato eleitoral.
A manipulação da opinião pública pelo poder econômico abre o caminho para que prestidigitadores políticos vendam gato por lebre. Sem discutir ideologia e programa, o sistema de representação torna-se um embuste e os agentes políticos se transformam em meros despachantes de interesses privados espúrios. O controle do Estado fica à mercê das guerras intestinas das quadrilhas que comandam os cofres públicos. É o que está por trás dos recorrentes escândalos de corrupção que ocupam o noticiário nacional. Como consequência, a confiança da população no sistema de representação democrática torna-se nula.
Epicentro da crise cataclísmica que abala a vida nacional, as implicações do que ocorre no Rio de Janeiro extrapolam as fronteiras estaduais. Na verdade, a política fluminense condensa as terríveis contradições de uma sociedade em franca reversão neocolonial. Não por acaso é exatamente aí que se está gestando o núcleo duro dos agentes políticos que compõem a vanguarda da revolução reacionária que leva o Brasil ao século XIX. Com a chegada de Luiz Fux à presidência do Supremo Tribunal Federal, autoridades oriundas do Rio de Janeiro estarão no topo da hierarquia dos três poderes da República. Somam-se ainda os dois personagens mais influentes que atuam no governo federal: Paulo Guedes, ventríloquo do mercado financeiro, que dita os imperativos do capital; e Braga Netto, interventor da capital fluminense, porta-voz das forças armadas, que reivindica o papel dos militares como poder moderador acima dos poderes instituídos.
Não obstante a forte resistência dos trabalhadores fluminenses, com destaque para a brava luta dos funcionários públicos contra o ajuste fiscal do governo estadual, as greves vitoriosas dos bombeiros e dos garis, é sombrio o saldo político dos embates dos últimos anos. O acirramento da luta de classes no estado, ao contrário do que se poderia esperar, não criou lideranças comprometidas com os interesses populares nem gerou uma vontade política organizada que colocasse em questão as estruturas responsáveis pelas mazelas do povo.
O esforço de recauchutar o modo petista de governar deu com os burros n’água. Não é desse jeito que se vai enfrentar a ofensiva do capital. A população já não acredita nas instituições carcomidas da Nova República. A direita reacionária alimenta-se da absoluta desesperança da população em relação à possibilidade de uma solução republicana para a crise nacional.
Na ausência de uma alternativa de esquerda contra a ordem, que supere as insuficiências da democracia de cooptação, as frustrações e ressentimentos dos trabalhadores com a escalada da crise social e o descalabro das políticas públicas estão sendo capitalizados pelos setores mais reacionários e autoritários da sociedade.
A direita contra a ordem constitucional de 1988 recruta seus quadros na escória da sociedade. Daí o protagonismo dos pastores que controlam as igrejas evangélicas baseadas na teologia da prosperidade; dos grupos milicianos que dominam os pequenos negócios nas periferias das grandes cidades; dos falsos moralistas, arrivistas ressentidos, que utilizam a cruzada anticorrupção como pretexto para atacar as instituições democráticas; dos militares entreguistas que se aproveitam das águas turvas para galgar posições na estrutura do Estado e se afirmar como poder moderador; dos especuladores do mercado financeiro que entendem as crises como oportunidades de negócio; dos políticos do “baixo clero” que aproveitam a situação caótica para vender seus serviços de administração dos negócios do Estado para quem pagar mais.
O Rio de Janeiro tornou-se um laboratório do padrão de dominação autoritário que corresponde à solução liberal para a crise econômica. A julgar pelas tendências em curso, o vazio gerado pela desorganização e desalento da classe trabalhadora será preenchido pela crescente influência da religião, das milícias, do clientelismo corrupto e dos aparelhos repressivos do Estado na gestão do Estado.
Não há antídoto ao avanço da reação autoritária por dentro dos parâmetros da ordem em decomposição. Como todo o Brasil, os fluminenses precisam de uma alternativa de esquerda contra a ordem que organize uma resposta revolucionária à contrarrevolução em curso. Sem colocar em debate a urgência de uma intervenção popular capaz de enfrentar a segregação social e o despotismo dos negócios, será impossível deter a marcha macabra dos acontecimentos. A construção de uma Frente de Esquerda Socialista, enraizada nas lutas sociais, é a tarefa emergencial.
Contrapoder, 07 de setembro de 2020.
Excelente a matéria. Precisamos urgentemente intensificar a luta por uma radical mudança no sistema.