Pandemia e guerra de classes

A pandemia de coronavírus leva ao paroxismo o antagonismo entre a exploração capitalista e a saúde dos trabalhadores. Hostil a qualquer obstáculo que comprometa a produção e circulação de mercadorias, a burguesia opõe-se com unhas e dentes à quarentena – a única medida capaz de deter a disseminação descontrolada da epidemia na ausência de vacina. Daí o atraso em sua decretação, seu caráter parcial e a permanente pressão por sua suspensão em todos os cantos do globo.

Para impor sua vontade ao conjunto da sociedade, o capital submete o trabalhador a uma escolha macabra: enfrentar o risco de contaminação ou morrer de fome. Para tanto, sabota sistematicamente a suspensão de atividades não essenciais e a transferência de renda aos pobres e desempregados. Não por falta de recursos, pois apenas uma fração do que tem sido transferido para salvar as grandes corporações já seria suficiente para permitir que nenhum cidadão fosse atormentado pelo fantasma da penúria.

Sem contestarem o princípio do lucro e das soluções individuais que preside a lógica do capital e as ações do Estado burguês, os trabalhadores não têm como sair desse antro estreito. O antídoto à barbárie capitalista é a luta coletiva baseada no princípio da defesa intransigente da vida e da busca permanente da igualdade substantiva. É o que tem impulsionado, ainda que em estado germinal, a luta dos trabalhadores em todos os cantos do mundo.

As virulentas críticas desencadeadas pela morte do jovem médico da província de Wuhan, que enfrentou a censura do Estado chinês para alertar o mundo sobre a emergência do coronavírus, foram determinantes para forçar as autoridades a deixar de negar o problema e a tomar medidas para enfrentar a emergência sanitária. Sem as greves espontâneas de trabalhadores italianos para garantir a suspensão das atividades não essenciais e condições seguras de trabalho para as atividades essenciais, os sindicatos e o governo não teriam chegado ao protocolo – “Saúde primeiro, lucro depois” – que estabeleceu critérios mínimos de proteção da força de trabalho contra as pressões do patronato. Foi a decisão dos trabalhadores do Museu do Louvre na França de cruzar os braços que interrompeu o absurdo de permitir que a contemplação da arte fosse feita às custas de vidas humanas. Nos Estados Unidos, desde março, mais de 220 greves espontâneas, protagonizadas pelas mais variadas categorias, foram fundamentais para conter a utilização da força de trabalho como bucha de canhão do capital em crise.[1]

A generalização de protestos de médicos e enfermeiros que denunciam a falta de segurança nos hospitais é a prova cabal de que o mundo burguês contemporâneo é completamente destituído de qualquer valor humanitário. No elo fraco do sistema capitalista, onde a violência da exploração se apresenta de maneira mais brutal, a presença civilizatória dos trabalhadores é ainda mais urgente. Lentamente, a reação dos de baixo se esboça.

No Líbano, a quarentena não impediu que centenas de milhares de pessoas fossem às ruas para protestar contra o desemprego e o descalabro econômico. Nas cidades bolivianas de Cochabamba e El Alto, a população faminta fechou estradas e enfrentou as forças policiais para exigir políticas públicas e denunciar os desmandos do governo golpista de Jeanine Áñez.

No Chile, a quarentena parcial e o Estado de exceção não impediram o ascenso dos protestos sociais. Desde o final de abril, a população da periferia de Santiago tem enfrentado a repressão para protestar contra a miséria, obrigando o governo reacionário de Sebastián Piñera a anunciar novas medidas de assistência à população para conter a “Revolta da fome” – designação dada pela população ao novo ciclo de protestos. Desde o início de maio, sob a consigna “viviremos, voltaremos, venceremos!”, militantes de esquerda, em pequenos grupos, têm retomado manifestações de ruas no centro da cidade, exigindo mudanças econômicas, sociais e políticas estruturais.

No Brasil, a luta direta contra a barbárie provocada pela crise do coronavírus ainda é incipiente, mas tende inexoravelmente a crescer. Os que foram abandonados pelas políticas públicas não têm outra opção. Os exemplos dos trabalhadores da Chery que entraram em greve contra a demissão de seus companheiros; do sindicato dos metalúrgicos de São José dos Campos, que decretou estado de greve exigindo a licença remunerada para todos os trabalhadores não essenciais; dos motoristas e cobradores de Teresina, que fizeram greve exigindo água, sabão e álcool em gel para trabalhar; dos funcionários da Almaviva, um dos principais call centers do país, que paralisaram as atividades para exigir que a empresa pelo menos lhes forneça condições de higiene; dos enfermeiros, residentes, médicos e demais trabalhadores do hospital universitário da USP, que, como em tantos outros lugares, se mobilizam por equipamentos de segurança; dos coveiros da cidade de São Paulo, que denunciaram a absoluta falta de equipamentos de proteção; e dos moradores de Paraisópolis, que fizeram passeata com distanciamento social para cobrar das autoridades políticas públicas para a favela são apenas os primeiros movimentos de uma avalanche de protestos que o próprio aprofundamento da crise geral tende a impulsionar.

Com a chegada de Bolsonaro ao governo federal, as taras do capital foram levadas à sua expressão máxima, e a razão de Estado passou a se manifestar destituída definitivamente de toda e qualquer mediação republicana. O interesse público não faz parte do cálculo político dos piratas que, com o apoio da casta militar, se aboletaram no poder. É o que fica cristalino no pavoroso vídeo que registra a reunião ministerial do dia 22 de abril.

Em meio a uma pandemia que ameaça a vida de centenas de milhares de brasileiros, nenhuma preocupação em reforçar o SUS. Diante da maior crise econômica da história do país, nenhuma palavra sobre políticas econômicas anticíclicas, garantia de emprego aos trabalhadores, transferência de renda aos desempregados e desvalidos.

A desfaçatez das autoridades aboletadas no Palácio do Planalto é estarrecedora. As crises sanitária e econômica são vistas única e exclusivamente como oportunidades para avançar na devastação da natureza, na retirada de direitos dos trabalhadores, na desnacionalização da economia, na geração de negócios para o grande capital, na defesa da família e dos amigos do presidente e no ataque às instituições democráticas.

Já se sabia que o governo Bolsonaro era um covil de bandidos, mas não se imaginava que as autoridades não guardassem entre si um mínimo de respeito e decoro. Em meio a gritos e impropérios, a conspiração contra o interesse público é aberta e direta. O Ministro do Meio Ambiente entende a pandemia como uma oportunidade para ir “passando a boiada” e entregar a riqueza natural “de baciada” à exploração do capital. O Ministro da Economia vangloria-se de ter aproveitado a crise federativa para colocar uma “granada no bolso” dos funcionários públicos e explicita a intenção de aproveitar a depressão econômica para vender “a porra” do Banco do Brasil e “ganhar dinheiro” usando recursos públicos para “salvar grandes companhias”. O Ministro da Educação insulta os “vagabundos” do Congresso e do STF e manifesta o desejo de prendê-los. A Ministra dos Direitos Humanos quer encarcerar governadores e prefeitos. O Presidente da República preocupa-se obsessivamente em salvar a própria pele e assume, aos gritos, que interferirá no que for necessário para proteger seus apaniguados. “Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”.

Ninguém está para brincadeira. Os trabalhadores não estão condenados a morrer de fome ou de coronavírus. Podem dedicar a vida à transformação radical da sociedade. Como dizem os chilenos que desafiam o poder econômico, social e político instalado por Pinochet: “si no nos mata el virus, nos mata el hambre”. Melhor do que morrer sem razão, é organizar a luta para matar o capitalismo. É o desafio de nosso tempo.

Contrapoder, 25 de maio de 2020.


[1] https://paydayreport.com/covid-19-strike-wave-interactive-map/

Um comentário sobre “Pandemia e guerra de classes

  • 26 de maio de 2020 at 5:33 am
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    Excelente análise para impulsionar a luta!

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