No dia 17 de outubro, a central sindical CSP-CONLUTAS divulgou um Plano Emergencial da Classe Trabalhadora para enfrentar a crise cataclísmica que abala a vida dos brasileiros. Trata-se de uma iniciativa fundamental para a construção de um projeto político que vá além do horizonte claustrofóbico da administração da barbárie. 1
O plano de ação proposto pela CSP-CONLUTAS reúne um amplo leque de medidas conjunturais e estruturais que se articulam em torno basicamente de seis objetivos:
- Garantir renda básica a todas as pessoas em situação de vulnerabilidade econômica a fim de que ninguém tenha de se expor à ameaça do contágio para não passar fome;
- Definir a geração de emprego e o combate à recessão como prioridades absolutas da política econômica, criando frentes de emprego e programas de investimento público nas áreas de saúde, educação, moradia, transporte público e saneamento básico;
- Estabelecer a primazia das políticas públicas sobre a administração da dívida pública, o que implica: 1)revogação da Lei de Responsabilidade Fiscal, da Lei do Teto de Gastos e de todos os dispositivos que compõem o regime de austeridade fiscal; 2) taxação do lucro e das grandes fortunas; e 3) desvalorização da dívida pública, pois sem a liquidação de uma massa imensa de capital fictício, que subordina a ação do Estado à perpetuação da especulação rentista, é impossível fazer políticas públicas;
- Estancar a sangria que significa a transferência de capital ao exterior derivados das despesas com juros, remessas de lucros e pagamento de royalties; bem como defender as reservas cambiais de ataques especulativos contra a moeda nacional pelo controle do poder público sobre todas as operações em moeda estrangeira;
- Combater a segregação social e a desigualdade de renda, o que requer transformações nas estruturas sociais e mudanças institucionais, tais como reforma agrária, reforma urbana, redução da jornada de trabalho e estatização dos setores estratégicos da economia; e, por fim,
- Subordinar a organização do modo de viver e produzir aos imperativos das necessidades do conjunto dos trabalhadores e do equilíbrio ecológico do planeta.
O sentido das medidas aponta em direção diametralmente oposta ao consenso burguês – que unifica todos os agentes políticos da ordem, do PSL e dos Patriotas ao PT e PCdB, em torno da estratégica comum de aproveitar a crise econômica e sanitária para aprofundar os ataques aos direitos dos trabalhadores, às políticas públicas, à soberania nacional e ao meio ambiente. O consenso conservador materializa-se na unidade monolítica em torno do dogma, totalmente infundado, de que as reformas liberais e o regime de austeridade fiscal constituem os únicos meios de recuperar o crescimento da economia.
Em 2020, o temor de que a crise sanitária se transformasse numa crise social de consequências políticas imprevisíveis levou a burguesia a abrir uma licença temporária à ortodoxia fiscal. Aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada, muito a contragosto, pelo Palácio do Planalto, a PEC do orçamento de guerra teve importante papel na mitigação dos efeitos mais virulentos da crise econômica sobre a população. Para Bolsonaro, foi a salvação da lavoura – uma surpresa geral, sobretudo das próprias autoridades econômicas, que não tinham a mínima consciência do que estavam fazendo.
O Auxílio Emergencial evitou que o colapso do mercado de trabalho se convertesse imediatamente numa pandemia de fome. Em agosto, o Governo Federal estimou que a transferência de renda para famílias em situação econômica vulnerável teria beneficiado cerca de 67 milhões de pessoas – o que equivale a quase 70% do total da força de trabalho. Um estudo da FGV calculou que, em agosto, tais transferências tinham mais do que compensado a perda de renda provocada pelo colapso do mercado de trabalho, levando a um aumento médio na renda das pessoas da ordem de 34%.2 É o que explica, em grande medida, a relativa “paz social” em meio a uma situação social dramática.
Os gastos extraordinários do Governo Federal com a pandemia também atenuaram a queda livre da demanda agregada. Não fosse o efeito anticíclico não planejado de tais gastos, estimados em torno de R$ 597 bilhões, cerca de 8,2% do PIB de 2019, o mergulho recessivo da economia teria sido ainda pior. Mesmo assim, a dimensão da crise é gigantesca. Previsões do IPEA esperam uma contração de 5% a 6% do PIB em 2020, levando a renda per capita do país ao patamar de treze anos atrás – o pior resultado já registrado pelo IBGE. 3
A mitigação dos efeitos mais perversos da crise econômica e social não implica a superação dos problemas que convulsionam a vida nacional. Desarticulada de uma estratégia anticíclica mais geral, a liberdade temporária da camisa de força do regime de austeridade fiscal não passa de um expediente desesperado de administração da crise econômica e da barbárie social.
A ideia de que as medidas emergenciais extraordinárias devam ser gradativamente eliminadas em 2021 é, sob todos os aspectos – sanitário, econômico e financeiro –, absolutamente descabida. O espectro de uma estagnação de longa duração e de uma progressiva degradação das condições de vida da classe trabalhadora continua presente.
A administração ad hoc da crise corre contra o tempo. A política econômica anticíclica é simplesmente inconciliável com a preservação do regime de austeridade fiscal. O aumento expressivo dos gastos públicos e a drástica contração da receita tributária levaram a uma ampliação sem precedentes do déficit primário do setor público, cujo valor no final de 2020, segundo previsões do IPEA, deverá alcançar 12% do PIB. A falta de dinamismo da economia e a escalada da dívida pública apontam para o colapso financeiro do setor público, explicitando a total insustentabilidade da solução liberal para a crise econômica e social que convulsiona o país.4
Na ausência de alternativa, a sociedade brasileira não consegue quebrar o círculo vicioso do ajuste fiscal permanente e das reformas liberais sem fim que há seis anos mantém a economia prostrada. A história recente é inequívoca. Sem disputar o futuro, a polarização da luta de classes fortalece os setores mais reacionários da burguesia.
Daí a importância crucial do Plano Emergencial da Classe Trabalhadora da CSP-CONLUTAS. Trata-se de um projeto econômico e político que deve ser estudado e debatido pelos trabalhadores por todo o Brasil. Sem norte, a classe trabalhadora fica condenada a soluções antissociais, antinacionais e antidemocráticas, podendo, na melhor das hipóteses, influenciar o ritmo e a intensidade da marcha inexorável para a barbárie. A construção de uma vontade coletiva que unifique a classe trabalhadora em torno de uma saída democrática e popular para a crise capitalista é o primeiro passo para transformações ainda mais ambiciosas, que extrapolam as fronteiras nacionais, colocando na ordem do dia a necessidade histórica do socialismo.
Contrapoder, 26 de outubro de 2020
Referências
- CSP-CONLUTAS. Plano Emergencial de Obras e Empregos, Já! In: http://cspconlutas.org.br/2020/10/csp-conlutas-lanca-programa-dos-trabalhadores-para-enfrentar-crise-economica-e-sanitaria-do-pais/
- Conforme estudo de Lauro Gonzales, “Mudanças nos valores do auxílio emergencial: Cenários e efeitos sobre a renda”, in: https://eaesp.fgv.br/producao-intelectual/mudancas-valores-auxilio-emergencial-cenarios-e-efeitos-sobre-renda
- IPEA. Carta de Conjuntura, número 49 – Nota de Conjuntura 7 – 4º Trimestres de 2020, PNAD COVID-19, 16/10/2020. https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2020/10/pnad-covid-19-divulgacao-de-16102020-principais-destaques/
- IPEA. Carta de Conjuntura, número 49 – Nota de Conjuntura 7 – 4º Trimestres de 2020, PNAD COVID-19, 16/10/2020. https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2020/10/pnad-covid-19-divulgacao-de-16102020-principais-destaques/