O assassinato de Bruno Pereira e Dom Philips revela mais do que a renitente disputa pela terra e pelos recursos naturais da Amazônia entre indígenas e invasores de variadas estirpes. Revela o confronto entre o poder estatal do capital, organizado para fortalecer e legitimar a pilhagem de bens e terras públicas por agentes da acumulação primitiva e do crime organizado, e a auto-organização dos povos da floresta (indígenas, comunidades tradicionais de seringueiros, castanheiros, etc.), seus verdadeiros defensores e praticantes de um modo de vida condizente com sua preservação.
Desde o início do mandato, o governo Bolsonaro alia o desmonte dos órgãos de fiscalização e controle, como a Funai, o Ibama e o ICMBio, à recusa em demarcar terras indígenas e quilombolas, à flexibilização das regras que limitam sua exploração e ao estímulo explícito à ação ilegal de madeireiros, garimpeiros e pecuaristas. Esta política de “criação intencional do caos”, em que o Estado abdica de suas funções reguladoras e fiscalizadoras, visa eliminar os mecanismos e procedimentos que dificultam a penetração do capital e a exploração predatória da floresta, criando uma “terra sem lei” em que prevalece a violência privada e a força do poder econômico sobre os povos da floresta. Trata-se de um projeto que favorece os setores do capital vinculados a formas de apropriação e acumulação capitalista baseadas no saque puro e simples de recursos naturais públicos, na criminalidade e no tráfico de madeira, minerais e mesmo drogas. Esses setores, observe-se, são altamente funcionais para uma economia orientada pela lógica privatista neoliberal e em processo acelerado de reprimarização e regressão neocolonial. Daí o comprometimento do governo e do aparelho de Estado, incluindo as Forças Armadas, com o avanço deste capitalismo de predação, entregando a soberania de vastos territórios de fronteira escassamente habitados e outros ao domínio particular de organizações criminosas, muitas delas com conexões internacionais. Nessas regiões, a presença do Estado tem se limitado cada vez mais à institucionalização do “liberou geral”, com a cobertura do aparato repressivo, voltado para combater as lutas sociais e a resistência popular.
Do lado contrário desta luta de vida ou morte pela Amazônia estão os povos da floresta, organizados em associações, cooperativas e movimentos sociais e voltados para defender seu bioma, seu modo de vida, e resistir à sua destruição pela expansão capitalista. Na vanguarda deste processo de auto-organização, autodefesa e resistência estava ninguém menos que Bruno Pereira. Indigenista, servidor público, Bruno licenciou-se da Funai quando passou a ser perseguido por conta da nova diretriz adotada pelo órgão, de ataque aos direitos indígenas e cobertura institucional para a destruição da floresta. Atuando diretamente com a Unijava (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), Bruno Pereira teve papel destacado na auto-organização dos povos da região, atuando na constituição de um sistema de autodefesa e de vigilância da terra indígena contra a presença de invasores, a extração ilegal de recursos e a destruição ambiental. Portanto, as inúmeras ameaças de morte que sofreu e o atentado que lhe tirou a vida não podem ser entendidos apenas como mais um episódio na longa série de crimes contra ambientalistas, indigenistas e lutadores sociais na região amazônica, mas sobretudo como o desenlace dramático da contradição entre o poder do Estado e do capital e o contrapoder dos povos da floresta. A negligência demonstrada pelas forças policiais e militares não só na procura por Bruno e Dom e na investigação de seu assassinato, mas também diante das inúmeras denúncias feitas por ele sobre as constantes ameaças de morte que sofreu ao longo dos anos vai além da inépcia de um Estado altamente seletivo quando se trata de garantir a proteção e segurança de seus cidadãos. O comportamento de Bolsonaro e da PF desqualificando a atividade de ambos na região e escamoteando o papel central dos militantes da Unijava na indicação dos assassinos e na localização dos corpos e pertences vai além do desprezo atávico pela vida por um presidente fascista e do aparelhamento das instituições policiais pelo bolsonarismo. Tudo isto revela que no assassinato de Bruno Pereira o que está em jogo é a definição de quem tem o poder na região amazônica, se os povos da floresta auto-organizados em torno de uma perspectiva política socialmente justa e ambientalmente adequada ou o condomínio da morte que reúne garimpeiros, madeireiros, pecuaristas e traficantes, com a cobertura do Estado, em torno de uma perspectiva de pilhagem, exploração, violência e destruição. Que a experiência política de contrapoder da Unijava sirva de exemplo aos trabalhadores e explorados país afora, particularmente onde o Estado se apresenta como a salvaguarda do crime organizado e da ilegalidade. Que a morte de Bruno e Dom não tenha sido em vão!
Contrapoder, 29 de junho de 2022.