A crise brasileira escala, mas as saídas por dentro da ordem avançam como se isso fosse plausível. O consenso burguês em torno do “Fica Bolsonaro” mostra-se inabalável, mesmo diante da realidade trágica de que o bolsonarismo não apenas alimenta o negacionismo e uma política genocida que prorroga a pandemia o máximo possível, mas também sustenta uma indústria da morte, envolvendo hospitais e planos de saúde privados, entidades médicas, laboratórios e agências reguladoras, numa lógica macabra em que o aumento dos lucros está na razão direta do crescimento dos cadáveres. A mesma lógica da razão direta se estabelece entre os interesses individuais do ministro da Economia e do presidente do Banco Central e a administração altista da taxa de câmbio, numa relação promíscua entre público e privado típica do neoliberalismo.
Não obstante as 600 mil mortes pela Covid-19, que colocam o país na segunda posição mundial no ranking da pandemia, e do custo de vida nas alturas, o que se vê é a “passação de pano” geral. A mídia, o STF, o MP, o Congresso, a oposição dentro da ordem são cúmplices de Bolsonaro. Afinal, como condenar a Prevent Senior, o Conselho Federal de Medicina e a Agência Nacional de Saúde Suplementar sem condenar a própria política de privatização da saúde e de aparelhamento do Estado pelas empresas privadas? Como condenar Guedes e Campos Neto sem condenar o rentismo e a prática corriqueira entre os endinheirados de todos os quadrantes de esconder dinheiro no exterior para fugir da tributação, lavar dinheiro e se proteger das intempéries da economia nacional? Como pôr um ponto final em tudo isso, começando por destituir imediatamente um governo que é a expressão radicalizada dessas práticas, mas cuja sobrevivência é funcional para a aprovação do que falta da plataforma neoliberal extremada, de interesse de todas as burguesias e de todos os seus agentes políticos?
A mobilização pelo “Fora Bolsonaro” continua nas ruas, como ocorreu no último dia 2 de outubro, mas seu sentido original tem se perdido em meio à perspectiva burguesa de saída institucional para a crise, pois enquanto o impeachment de Bolsonaro parece “subir no telhado” definitivamente, busca-se transformar as ruas em cenário da pactuação nacional e da disputa eleitoral, capturando dos trabalhadores o único espaço de luta classista e autônoma que lhes restou diante de um sistema de representação política restrito à sua participação, de uma institucionalidade política que combate as lutas sociais como crime hediondo e de um aparelho de Estado cada vez mais fascistizado. A frente ampla com as forças golpistas só interessa a elas mesmas, em sua estratégia de institucionalização do golpe de 2016 e de sua pauta política e econômica de ataque aos trabalhadores, assim como aos que imaginam poder terceirizar o trabalho sujo contra os trabalhadores na vã esperança de, em seguida, reeditar a política de conciliação de classes, como se nada tivesse acontecido de 2013 para cá. Por caminhos paralelos, de um lado e de outro busca-se superar a crise de hegemonia nos marcos da democracia restrita vigente, mantendo a carapaça de uma Constituição completamente desfigurada pela escalada autoritária dos últimos anos e pelas contrarreformas neoliberais, ao mesmo tempo em que Bolsonaro é sangrado a conta-gotas para continuar “passando a boiada” e chegar às eleições sem força para ganhar ou tentar o golpe mais uma vez. Independentemente do resultado eleitoral, nestas condições, o governo saído das urnas terá o papel de legitimar o golpe de 2016, como saída “popular” ou como saída da “moderação liberal”, buscando tourear uma situação econômico-social onde aos trabalhadores cabe aceitar docilmente a condição de “burro de carga”, tendo de trabalhar sem direitos, com salários arrochados, trabalho intermitente, acesso ainda mais restrito aos bens de consumo, até mesmo a alimentação, e total ausência de políticas sociais.
A luta contra a estabilização da democracia restrita e do neoliberalismo é crucial para os trabalhadores e passa não só pela articulação entre a mobilização de massas nas ruas e outras formas de luta – como greves, ocupações, comitês de solidariedade e ajuda mútua diante da crise e da pandemia e a constituição de comitês “Fora Bolsonaro e Mourão” pelo país afora –, mas também pela ação conjunta de todas as forças da esquerda contra a ordem que se orientam por uma perspectiva classista e de autonomia dos trabalhadores diante do Estado, do capital e de suas variantes políticas à direita e à esquerda.
A proposta de constituição de uma frente de partidos e organizações políticas, movimentos sociais, movimentos populares e entidades civis num Polo Socialista e Revolucionário é muito bem-vinda e deve ser atentamente considerada por todas as forças que se pautam pela perspectiva de ruptura com a ordem do capital. Além de exprimir uma necessidade histórica diante da crise estrutural do capital, a constituição de uma frente da esquerda contra a ordem é fundamental na presente conjuntura, tanto para derrotar o bolsonarismo, o golpe de 2016 e as iniciativas para sua consolidação, quanto para que a atual retomada da mobilização de massas não seja capturada pelo institucionalismo e pelo eleitoralismo e permita um salto de qualidade na superação do transformismo e na construção de um programa ao mesmo tempo antineoliberal, anti-autocrático, socialista e revolucionário. Neste sentido, é fundamental constituir um método de discussão, elaboração, sistematização e ação que não só garanta o debate honesto, fraterno e pluralista, sem sectarismos e onde da contraposição de ideias e concepções frutifique a prevalência do consenso na definição das propostas e pautas de luta, mas também assegure a autonomia política e organizativa de todas as forças, sem hegemonismos e aparelhismos. Esta é uma tarefa urgente e prioritária, para a qual a alternativa é a derrota política e a mistificação eleitoreira.
Contrapoder, 13 de outubro de 2021
POLO SOCIALISTA E REVOLUCIONARIO necessidade urgente para a luta de classes no Brasil. Vamos nos envolver nesta Mobilizacao?