A pandemia da Covid-19 mostra a cada dia que a lógica do capital é incompatível com o equilíbrio ambiental, a saúde e o bem-estar. O caráter crescentemente destrutivo e predatório do sistema produtivo transforma tudo e todos em mercadorias de modo voraz e incontrolável, e promove o desaparecimento acelerado e irreversível de biomas, fauna e flora, com impactos profundos na reprodução da vida natural. A emergência de novos vírus como o coronavírus SARS-CoV-2, com alto poder de contágio e grande capacidade de mutação, reflete uma realidade cada vez mais comum, reiterada de tempos em tempos aqui e acolá. Os infectologistas já não se perguntam se haverá uma nova pandemia, mas sim quando e como ela ocorrerá. Além disso, a aceleração vertiginosa do contágio e a completa incapacidade de governos, autoridades da área de saúde e empresas em garantir condições adequadas para as medidas de isolamento social necessárias são evidências da contradição entre as formas de sociabilidade regidas pela lógica do capital e o imperativo da saúde e da própria vida. De maneira geral, as massas trabalhadoras são cotidianamente forçadas a buscar a sobrevivência fora de casa, correndo o risco de se contaminar e transmitir o vírus, sob pena de, ao não fazê-lo, ficar sem emprego e renda. Uma vez doentes, passam a depender de sistemas de saúde públicos ou privados dominados pela perspectiva empresarial, onde a redução de custos e a “otimização” de recursos, equipamentos e trabalhadores se impõem aos procedimentos médicos e sanitários necessários, gerando escassez de leitos, medicamentos e profissionais. A própria vacinação, solução definitiva para esta tragédia sanitária, limita-se aos poucos países com um mínimo de soberania nacional e, quando ocorre, arrasta-se lentamente, com produção aquém do necessário e disponibilizada a preços elevados, por conta do monopólio exercido por meia dúzia de megalaboratórios que detêm os direitos de patente e impedem a socialização da produção e o atendimento das necessidades.
Nos últimos meses, o Brasil tornou-se o epicentro desta tragédia mundial, a síntese das mazelas geradas pela contradição insanável entre capitalismo, saúde e vida, exposta à luz do dia pela pandemia. O governo Bolsonaro, principal responsável por esta situação, finalmente passou a ser pressionado pelo grande capital a tomar alguma providência, depois de meses de propaganda negacionista, boicote a qualquer tipo de distanciamento social (em especial o lockdown), delonga na compra de vacinas, fim do auxílio emergencial, mobilização das bases bolsonaristas para as “carreatas da morte”, etc. A coisa virou quando o descontrole total da pandemia começou a afetar seriamente as expectativas de retomada do crescimento econômico para 2021, com aumento do desemprego, redução do consumo, fuga de capitais, etc. A aceleração da vacinação tornou-se um imperativo para o capital, uma vez que a imunização da população dispensa a necessidade de novas medidas de quarentena, mesmo que locais e por tempo determinado, danosas para a lógica econômica. De todos os lados as pressões se avolumaram, partindo de governadores, prefeitos, juízes, grande mídia e mesmo da base parlamentar do governo no Congresso, o Centrão. Bolsonaro procurou sair do cerco da maneira habitual: acirrando a instabilidade política para suscitar a ruptura institucional. Incitando motins policiais nos estados, contestando junto ao STF a autonomia de prefeitos e governadores para a adoção de medidas sanitárias, principalmente o lockdown, e manobrando na calada do dia para a aprovação de plenos poderes para si no Congresso, Bolsonaro pretendia prender opositores, controlar as polícias estaduais, mobilizar recursos econômicos públicos e privados e, assim, aplicar um “autogolpe”. Para tanto, contava com a adesão interessada do Centrão – a quem ofereceu a cabeça de Ernesto Araújo e a secretaria de Governo – e dos militares, aliados ideológicos, cúmplices na fraude eleitoral de 2018 e beneficiados pelo governo com cargos, privilégios, reajustes salariais e verbas orçamentárias vultosas. Fracassou nos dois casos, pois, além da vontade e da situação de crise, os golpes dentro da ordem dependem do apoio do “andar de cima”. E o “andar de cima” não quer um novo golpe porque o golpe já foi dado e vai muito bem, obrigado!
Apesar da crise política, a ofensiva sobre os direitos, os salários e os empregos dos trabalhadores, agravada ainda mais pela pandemia, progride sem resistência popular efetiva, complementada pela restrição de seu espaço político, com a criminalização de suas organizações e lutas, e pela pilhagem dos recursos e bens públicos. Ainda faltam diversos ataques, eufemisticamente chamados pela mídia burguesa de “reformas” e pelo bolsonarismo-raiz de “passagem da boiada”, mas a coisa andou bem nos últimos cinco anos. As maiores dificuldades se deram justamente pela instabilidade política e pela falta de coordenação na distribuição do butim. Por isso, um autogolpe agora significa não apenas dar plenos poderes a um títere de ocasião e ainda por cima inconfiável e incapaz de compreender seu papel na ópera-bufa que protagoniza, mas também manter a instabilidade e a não coordenação ao perenizar a pandemia a ponto de pôr em risco a recuperação econômica e dificultar a ”passagem da boiada”. Daí o malogro da nova tentativa golpista junto à base aliada no Congresso e junto aos militares!
Por outro lado, o mesmo pode ser dito do movimento inverso, a derrubada de Bolsonaro, o impeachment. O “tiro n’água” disparado por Bolsonaro e o descrédito ainda maior em que se viu poderiam dar o sinal para a abertura de um dos mais de 60 pedidos de impeachment no Congresso, com o apoio de grande parte da população. Bem que Artur Lira chantageou dizendo que poderia recorrer a “remédios amargos”; porém, as mesmas burguesias, inclusive o imperialismo, e forças políticas que não querem a ditadura pessoal de Bolsonaro para não atrapalhar o bom encaminhamento da pauta econômica e política do golpe de 2016 e manter o atendimento dos interesses específicos de estamentos e grupos, também não querem sua derrubada pelos mesmos motivos. Afinal, além de longo, conflituoso e paralisante, um processo de impeachment poderia suscitar por parte dos trabalhadores o questionamento político de tudo o que se fez nos últimos anos contra seus direitos e interesses, e fortalecer as forças de esquerda. Todavia, ao contrário do que se deveria esperar, a esquerda da ordem também não quer o impeachment, pois aposta de tal maneira na luta institucional, na via eleitoral e no compromisso com as forças golpistas, que não quer qualquer alteração em seu roteiro estratégico, particularmente depois que Lula voltou ao jogo.
Portanto, as crises econômica e sanitária continuam, com a fome e o desemprego campeando, o país batendo recordes sucessivos de contaminados e mortos, tornando-se o principal viveiro de novas cepas do coronavírus e fonte de irradiação de novas ondas pelo mundo. Os trabalhadores continuam perdendo direitos e renda, obrigados a escolher entre o risco de contágio ao buscar trabalho e a certeza da fome ao ficar em casa. Também pode continuar a “democracia” que militariza a vida social nas periferias das cidades, que persegue e criminaliza as organizações do mundo do trabalho e os lutadores sociais, que torna o processo eleitoral um jogo de cassino entre os endinheirados e que transforma as instituições judiciais em “partidos” e fonte de sustentação de uma nova casta. Enquanto isso, o grande capital, a direita da ordem e seus porta-vozes na grande mídia e na academia soltam manifestos “pela vida”, e os militares posam de “legalistas” e “democratas”! Até 2022 Bolsonaro também continuará dificultando a vacinação e o combate à pandemia e agitando seus bandos fascistas. Por mais que no momento esta possibilidade esteja enfraquecida, enquanto Bolsonaro estiver no poder a aventura de um “autogolpe” fascista permanece como ameaça, pois esse é o núcleo de seu projeto político. Independentemente de sua viabilidade ou não, constitui num enorme perigo para os lutadores sociais e militantes socialistas, pois não é preciso muito para que seus bandos armados, de dentro e de fora do Estado, busquem promover a decapitação dos movimentos sociais e forças de esquerda por meio da violência. É preciso resistir a esta ameaça de maneira organizada e preventiva, e, ao mesmo tempo, desmascarar as mistificações “democráticas” verbalizadas nos últimos dias por golpistas e saudosos da ditadura. Mais do que necessárias, a auto-organização dos trabalhadores e a mobilização de massas se fazem urgentes para reverter todos os ataques aos direitos sociais, democráticos e trabalhistas efetuados contra os trabalhadores e anular o roteiro político macabro traçado pelas classes dominantes e seus funcionários para vigorar até as eleições de 2022.
Contrapoder, 06 de abril de 2021
Excelente artigo. Só não acho que Bolsonaro seja o cabeça pensando disso. Os militares, principalmente os do Exército, vem engendrado a tomada do poder há muito tempo, talvez desde a primeira eleição do Lula mas com certeza desde a eleição da Dilma e a CNV. Bolsonaro não tem essa capacidade que lhe atribuem por tudo que já demonstrou em sua vida pessoal e política. O Exército o escolheu, apesar de tudo, e lhe abriu as portas dos quartéis para a campanha presidencial. Não só isso, também destacou militares para ajudar coordenar sua campanha e eleitoral, e após eleito tomaram de assalto o governo e estão aparelhando empresas estatais e instituições federais com mais de
11.000 militares da ativa e da reserva. Bolsonaro é um projeto do Exército brasileiro e o manobra de acordo com os interesses e planos do Exército e demais forças secundariamente. Se houver necessidade e na hora certa vão descarta-lo. Pra isso tem o Gal Mourão, outro truculento, mas General.