Quem detém Bolsonaro?

A extrema violência inscrita na espiral ascendente da crise sanitária e econômica abriu definitivamente a caixa de Pandora, trazendo à tona, sem qualquer tipo de inibição, as taras mercantis e totalitárias das classes dominantes. No vácuo gerado pela ausência de pressão popular, o Estado brasileiro ficou integralmente submetido aos interesses particularistas e imediatistas da burguesia, e a luta pelo controle do poder estatal ficou restrita aos aventureiros que se digladiam para exercer o papel de agentes políticos da barbárie.

No momento mais dramático da história contemporânea do Brasil, torna-se praticamente impossível formular políticas públicas baseadas naquilo que um bom burguês designaria como a busca do “bem comum”. Sem uma mudança drástica no curso dos acontecimentos, parece cada vez mais distante a possibilidade de uma solução democrática para a crise institucional gerada pela falência terminal da Nova República.

A decisão de governadores e prefeitos de flexibilizar a quarentena  antes de a taxa de contaminação da doença cair abaixo de um, como recomendam os epidemiologistas, sem plano de testagem em massa para monitorar a evolução da doença e com o Sistema Único de Saúde (SUS) na iminência de colapso, para ficar apenas nos problemas mais óbvios, liquidou o último vestígio de política sanitária capaz de evitar o completo descontrole na transmissão do vírus.

Com o passar do tempo, ficou claro que a distância entre Bolsonaro, Dória e Witzel era muito menor do que se imaginava. Pressionados pelo capital, todos acabam se rendendo ao genocídio sanitário. E assim, sob a batuta de uma burguesia que sabota qualquer vestígio de racionalidade republicana, o Brasil marcha para tornar-se o epicentro da pandemia que aterroriza o mundo.

O sacrifício de centenas de milhares de vidas será em vão. A bagunça na política sanitária prolongará a crise da saúde. E mesmo que a imunização em rebanho resolvesse o problema, não há a menor possibilidade de o Brasil recuperar o crescimento e o emprego antes de uma solução efetiva para o problema sanitário – que demandará pelos menos mais uns 18 a 24 meses – e para a crise econômica mundial – que demandará um prazo bem maior. Pior ainda, a austeridade fiscal e as reformas liberais – os dois pilares da política econômica de Paulo Guedes – reforçam o mergulho recessivo.

Sem uma política de gasto público para contrabalançar a drástica contração do mercado interno e das exportações, na ausência de transferência de renda para os trabalhadores que perderam o emprego e na falta de um substancial reforço na capacidade de gasto dos governos estaduais e municipais, não há como evitar a explosão do desemprego e da pobreza. A disponibilidade de uma generosa quantia de recursos públicos para socorrer às grandes empresas – o centro das prioridades do Ministério da Economia – apenas aumentará a concentração do capital. Aproveitar a pandemia e o desespero da fome para congelar o salário dos funcionários públicos e atacar o direito dos trabalhadores, como contemplam as MPs 918 e 936, apenas aumentará a concentração da renda. Ao invés de evitar o naufrágio do Titanic, o governo Bolsonaro dedica-se a preparar os barcos salva-vidas dos passageiros da primeira classe e bloquear qualquer possibilidade de que os passageiros da segunda e da terceira classe tenham qualquer possibilidade de salvamento.

Apesar das aparências, Bolsonaro não é um homem destituído de intuição política. Enfrenta o acirramento da crise institucional com um plano estratégico bem definido. Reivindica o papel histórico de coveiro da Nova República. Aposta todas as fichas na possibilidade de transformar as frustrações e ressentimentos provocados pelas mortes e pela fome em violência política. Sonha com a paz dos cemitérios como meio de impor a paz social.

Bolsonaro apresenta-se como o demiurgo da contrarrevolução que levará o Brasil ao século XIX, o homem providencial pronto para o trabalho sujo que lhe for exigido. É o que fica comprovado no vídeo da reunião ministerial. Até o momento, o candidato a “chefe supremo” não reuniu força suficiente para protagonizar o assalto ao poder. Com ações e omissões, a burguesia tem sancionado seus atropelos à Constituição, mas tem relutado em lhe dar carta branca para a aventura despótica. Sem a luz verde da burguesia, as forças armadas não avalizam a saída do autogolpe.

No entanto, a crise política não tem como prosseguir indefinidamente. Seu movimento destrutivo cria irreversibilidades que tornam a continuidade da Nova República inviável. O braço de ferro entre o STF e Bolsonaro parece indicar que a crise institucional atingiu o clímax e que se caminha para um desfecho final.

A hesitação das classes dominantes abre espaço para aventuras bonapartistas. Se não houver a intervenção de algum elemento imprevisto – uma clara mudança na posição da burguesia ou um vigoroso basta das massas populares -, é pouco provável que o partido da toga – os verdugos da democracia restrita que impulsionaram e legitimaram a cruzada moralista como forma de disputa política – consiga deter o coveiro do estado de direito inscrito na Constituição de 1988.

Os que lutam contra a solução despótica correm contra o tempo. Ao contrário dos que acreditam na via parlamentar como meio de restauração da Constituição de 1988, apostando todas as fichas no compromisso constitucional da casta política, jurídica e militar, não haverá uma superação do sistema político em acelerada decomposição por dentro de sua própria institucionalidade.

Sem a intervenção dos trabalhadores, nada será capaz de deter a marcha inexorável da barbárie. As iniciativas de mobilização populares para barrar o avanço do golpe reacionário são ainda incipientes. Elas precisam crescer, massificar e ir além de uma mera manifestação de descontentamento. Sem paralisar a produção e circulação das mercadorias e fora das ruas, os trabalhadores não são ouvidos.

É urgente indicar de maneira clara e inequívoca que o povo só tem um caminho para dar um basta no desatino reacionário: apear Bolsonaro e Mourão do poder como primeiro passo para o início de um movimento pela convocação de uma Assembleia Constituinte livre e soberana, que promova uma completa reorganização das bases sociais do Estado brasileiro. Que soprem os ventos chilenos! Que as iniciativas das torcidas antifascistas dos times de futebol se multipliquem! Que todas as organizações de esquerda se juntem para planejar ações conjuntas pela deposição de Bolsonaro e Mourão! Que a revolta popular contra o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos inspire a juventude e os trabalhadores a enfrentar o monstro da segregação social e da necropolítica!

2 comentários sobre “Quem detém Bolsonaro?

  • 3 de junho de 2020 at 1:48 am
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    Concordo, com a discussão. Creio que nossa juventude tem que ser educada para discutir as questões públicas e sentir sujeito social…

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  • 6 de junho de 2020 at 2:50 am
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    eu postei no grupo Somos Setenta por cento, um pedido às pessoas para que não fossem às ruas no domingo pq segundo Luis Eduardo de Moraes é tudo que bolsonaro quer. Como assim? Ele acionará infiltrados pra promover baderna e quebra quebra acirrando mais ainda os animos gerando mais mais violência, o que lhe dará motivos para chamar a forças armadas e então dar o tão temido golpe. É possível!, dele se pode esperar tudo. Uma fera encurralada se torna mais feroz e insana.

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