Transição para onde?

Ecocapitalismo não resolve nada!

A COP26, sediada em Glasgow, ainda não terminou, mas já é possível tirar três conclusões com relação ao que foi discutido até agora: a) finalmente as grandes potências ocidentais reconhecem que a crise ambiental é grave e que o tempo que resta para reação é cada vez menor; b) a chamada “economia verde”, baseada na transição para a nova matriz energética, será a nova frente de expansão de uma economia capitalista em situação de crise estrutural ainda mais agravada pela pandemia; c) a urgência de uma mudança na política global de meio ambiente acelera a nova corrida interimperialista, com implicações geopolíticas de grande envergadura. Desde 1972, quando se realizou a primeira conferência sobre o clima, em Estocolmo, os encontros internacionais para discutir a situação ambiental do planeta se repetem, com a realização de reuniões anuais desde 1995, geralmente propondo medidas tímidas e insuficientes para sequer arrefecer a escalada do colapso ambiental, quanto mais para revertê-la. Ano após ano o aquecimento global se intensifica e as catástrofes ambientais se sucedem pelo mundo afora, com efeitos cada vez mais devastadores para os mais pobres, enquanto o capital se reproduz com a sanha destrutiva costumeira, combinando esgotamento dos recursos naturais, superexploração do trabalho, privatização dos bens essenciais à vida, obsolescência programada dos bens de consumo, máquinas e equipamentos e desperdício.

A COP deste ano propõe-se a adotar medidas que evitem que a temperatura média do planeta aumente além de 1,5 grau até 2050, índice limite para que as mudanças climáticas não se tornem irreversíveis. Ou seja, admite-se que o aquecimento global é incontornável e procura-se lidar com ele da maneira menos catastrófica possível, o que significa lidar com isso em conformidade com a lógica do capital. Daí as perorações de variadas lideranças políticas, principalmente do presidente dos EUA e do primeiro-ministro do Reino Unido, sobre a urgência de que algo se faça além do estabelecimento de metas para a redução das emissões de carbono, do desmatamento, etc., envidando-se todos os esforços para a transição imediata para uma “economia verde”, livre de carbono, baseada na substituição dos combustíveis fósseis por fontes de energia limpas e renováveis. Biden se comprometeu a destinar nada menos que 555 bilhões de dólares do governo estadunidense para a empreitada e instituições financeiras fecharam acordo para investir 130 trilhões de dólares nesta década.1

A panaceia anunciada para o colapso ambiental impressiona pela ambição e pela nova disposição dos representantes políticos das potências capitalistas, historicamente as maiores produtoras de CO2 do planeta desde 17502, em atuar efetivamente. A novidade, no entanto, é apenas aparente. Na verdade, a nova “economia verde” abre uma nova frente de expansão capitalista, com o aprofundamento e ampliação dos métodos e da lógica de acumulação já presente na produção de biocombustíveis, nos projetos de reflorestamento e no mercado de créditos de carbono, com a prevalência do valor de troca como critério definidor do investimento econômico e da monopolização como seu resultado inevitável. Não é de hoje que a produção de biocombustíveis (cana-de-açúcar, soja, milho, etc.) tem significado concentração fundiária, expulsão de pequenos produtores, queimadas e desmatamento, redução da produção de alimentos e inflação, fome e especulação financeira por meio de sua “comoditização” e negociação no mercado futuro.3 Ocorre o mesmo no mercado de “créditos de carbono”, certificados negociados pelo sistema financeiro e que permitem aos poluidores emitir gases de efeito estufa a um custo menor em relação às multas e sanções. Em algumas cidades do país, os consumidores já pagam uma taxa extra na conta de água pela preservação de mananciais e nascentes da bacia hidrográfica que garante seu abastecimento; enquanto em outras, a energia solar é fornecida por “usinas” que na prática são enormes “fazendas”, com “lavouras” de placas fotovoltaicas a perder de vista.4 Ou seja, nada de responsabilidade ambiental, função social e produção descentralizada; mas sim mercadorização, concentração econômica e especulação. Para além das gigantescas oportunidades de negócio que a “nova economia” oferece, determinando investimentos públicos e privados, outro componente poderoso a motivar a transição para uma nova matriz energética é a disputa geopolítica. Como em outros momentos da história, mais uma vez a inovação tecnológica é impulsionada pela guerra. A “dronização” da guerra exige não apenas altas doses de inteligência artificial, com armas inteligentes que funcionam sem a presença humana imediata, mas também a produção autônoma e local de energia para o abastecimento de armas, equipamentos e veículos, de modo a diminuir a importância dos aparatos logísticos de transporte e abastecimento de combustíveis fósseis, principalmente petróleo, e o controle de suas regiões produtoras. No atual momento de acirramento da disputa interimperialista e redefinição do equilíbrio geopolítico entre as potências, a produção de fontes de energia limpas e renováveis é parte central da corrida armamentista.5 A ausência dos presidentes de Rússia e China da COP 26 é sintomática e pode indicar mais do que uma simples rusga político-diplomática.

Apesar da urgência imposta pela crise ambiental, as “soluções” ecocapitalistas ficam muito aquém do que seria necessário. O conteúdo mercantil e expansionista da “economia verde” é antagônico às mudanças no modo de viver e produzir que seriam necessárias para reverter o colapso ambiental em curso. Em primeiro lugar, a velha matriz energética se baseia em recursos ainda abundantes e relativamente baratos, o que, pela lógica do capital, desautoriza qualquer recusa em explorá-los de maneira crescentemente predatória até seu esgotamento. Em segundo lugar, o avanço predatório sobre recursos naturais e bens públicos é hoje elemento fundamental na economia capitalista, principalmente em países periféricos como o Brasil, onde a acumulação primitiva é elemento fundamental na reprodução do capital. A assinatura do acordo de redução da emissão de gás metano e do desmatamento pelo governo brasileiro é sintomática desta situação. Sob pressão diplomática dos EUA, o país assinou um compromisso que vai na contramão da dinâmica atual de sua economia, em grande medida imposta pelo próprio imperialismo, e fere diretamente os interesses das frações burguesas mais identificadas politicamente com o governo. O que vai prevalecer, a caneta ou a motosserra?

Em terceiro lugar, nenhuma transição energética conduzida sob a lógica do capital será capaz de reverter o curso do colapso ambiental, criando o aclamado “desenvolvimento sustentável”, e garantir um sistema produtivo ambientalmente adequado, pacífico e socialmente justo. Prevalecerá a lógica da mercadoria, da destrutibilidade economicamente motivada e legitimada, da belicosidade e da hierarquia entre classes, povos e países. A ameaça à existência humana colocada pela crise ambiental exige mais do que a transição para uma nova matriz energética, requer um sistema produtivo alicerçado na lógica do valor de uso e na definição democrática e coletiva do que produzir e de como produzir. Isto só será possível numa economia socialista que promova a satisfação prioritária das necessidades humanas, não do capital, e a abolição das classes e do Estado. Mais que a transição energética, urgente hoje é a ruptura socialista!

Contrapoder, 10 de novembro de 2021

Referências

  1. Acordo na COP26 promete US$ 130 trilhões por economia livre de carbono. Veja mais em: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2021/11/03/acordo-na-cop26-promete-us-130-trilhoes-por-economia-livre-de-carbono.htm
  2. Europa, Ásia e América do Norte concentram 92,8% das emissões de CO2, veja em: https://www.nexojornal.com.br/grafico/2021/11/03/Europa-%C3%81sia-e-Am%C3%A9rica-do-Norte-concentram-928-das-emiss%C3%B5es-de-CO2
  3. DIERCKXXSENS, Wim  et ali.  Século XXI: crise de uma civilização. Fim da história ou começo de uma nova história? Goiânia: CEPEC, 2010, pg. 83-112.
  4. Como pagar os custos para proteger as fontes de água?, ver em https://www.tnc.org.br/o-que-fazemos/nossas-iniciativas/coalizao-cidades-pela-agua/coalizao-5-anos/como-pagar-para-proteger-a-agua/; Crise hídrica impulsiona energia solar, ver em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/10/23/crise-hidrica-impulsiona-energia-solar.ghtml
  5. FIORI, José Luis. “A guerra, a preparação para a guerra e a ‘transição energética’”. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/600705-a-guerra-a-preparacao-para-a-guerra-e-a-transicao-energetica

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