Uma CPI muito aquém do holocausto

A liderança da CPI da pandemia encerrou os trabalhos em clima de indisfarçável autocongratulação pelo sentimento do dever cumprido. No entanto, não há quase nada a comemorar. O relatório aprovado destaca-se pela absoluta incongruência entre a gravidade dos crimes apurados, a superficialidade de suas conclusões e a inocuidade de suas consequências práticas.

A CPI comprovou com farta documentação o que já era evidente.1 A tragédia sanitária foi fruto de uma política deliberada dos donos do poder. Ao colocar o lucro acima da vida, o Estado brasileiro tornou-se impotente para interromper a livre circulação do coronavírus entre a população. A subestimação da gravidade da pandemia, o boicote sistemático às medidas de isolamento social, a sabotagem da compra de vacinas e a divulgação generalizada de falsos remédios deixaram os brasileiros à mercê de uma estratégia sanitária criminosa – a imunização de rebanho. Para arrematar, as investigações revelaram macabras experiências de hospitais privados que utilizaram seres humanos como cobaias, bem como tenebrosos esquemas de corrupção comandados pela alta cúpula do governo federal envolvendo políticos, militares, líderes religiosos e empresários. O presidente sabia de tudo. O resultado é a maior tragédia humanitária da história nacional. Com 2,7% da população mundial, o Brasil registra 12,2% de todos os óbitos provocados pela pandemia de coronavírus – o décimo país, entre 178, com maior índice de morte per capita por Covid-19 do planeta.

O relatório da CPI pediu a responsabilização criminal de 66 pessoas pela tragédia sanitária e, após muita celeuma sobre o papel da política sanitária no genocídio dos povos originários, restringiu a acusação contra o presidente da República ao crime contra a humanidade. Até a entrega final do relatório, a lista de incriminados deve aumentar. Não é crível, entretanto, que uma barbaridade dessa envergadura – a morte de mais de 606 mil brasileiros em menos de dois anos – tenha ocorrido sem a cumplicidade direta e indireta do conjunto das instituições que compõem o Estado brasileiro e o total beneplácito da burguesia.2

A individualização das responsabilidades políticas e criminais pela tragédia sanitária é uma iniciativa necessária, porém muito insuficiente para se chegar à raiz de seus condicionantes sistêmicos, determinados pelas estruturas históricas da sociedade brasileira. A CPI ficou apenas na superfície. A participação decisiva da burguesia no holocausto ficou oculta. As principais perguntas ficaram sem respostas.

Por que o poder legislativo demorou mais de um ano para abrir uma investigação sobre o descalabro sanitário que vitimava a população? Por que os senadores pouparam a base política do governo Bolsonaro, isentando de qualquer responsabilidade o Centrão e os partidos militar, evangélico e empresarial, que militaram ativa e ostensivamente contra uma política sanitária baseada na defesa da vida? Por que a CPI não investigou o silêncio do Ministério Público diante de crimes que saltavam à vista? Por que nenhuma linha foi escrita sobre as políticas sanitárias dos governadores e prefeitos, que, em essência, mesmo que em dose menor, também foram integralmente subordinadas aos imperativos da economia? Por que nada foi dito sobre o efeito da política neoliberal no enfraquecimento do Sistema Único de Saúde e no comprometimento da autonomia sanitária do país? Por que não se investigou a fundo a interação entre mortes por Covid-19 e segregação social, quando há muito se sabe que a sindemia constitui um fator decisivo na definição do estado de saúde das pessoa?3 Por que não há sequer menção ao papel do imperialismo sanitário na tragédia brasileira?

Ruim com a CPI, pior ainda sem ela. A investigação do Senado foi fundamental para conter o descalabro sanitário do governo, acelerar a campanha de vacinação contra o coronavírus e conscientizar a população para a importância de medidas não farmacológicas como meio de proteção contra a Covid-19. Serviu também para explicitar a natureza reacionária, obscurantista, facínora e corrupta do governo Bolsonaro. Os documentos e depoimentos sobre a política sanitária genocida do governo Bolsonaro ficarão para sempre como um registro irrefutável da ruptura total e definitiva de qualquer nexo moral da burguesia com as classes subalternas.

Completamente desvinculada do movimento de rua pela deposição de Bolsonaro, a CPI tornou-se uma ação meramente formal que, na melhor hipótese, tem valor simbólico. As mesmas forças políticas que afirmam que o país é presidido por um homicida recusam comprometer-se de corpo e alma com sua deposição. Sem implicações políticas e legais que possam interromper a continuidade da camarilha militar-miliciana-teológica-empresarial que comanda o executivo nacional, as conclusões da investigação ficarão reduzidas a uma condenação moral, sem maiores consequências práticas, salvo o maior isolamento político de Bolsonaro e seu inexorável desgaste eleitoral.

Posto em perspectiva histórica, o relatório dos senadores cumpre a função compensatória de prestar alguma satisfação à população pelo descalabro sanitário e expiar a culpa das classes dominantes pelo massacre das classes subalternas. Ao transformar Bolsonaro em bode expiatório do morticínio em curso, a CPI isenta as instituições, os agentes políticos e a burguesia de qualquer responsabilidade pela marcha macabra do coronavírus na sociedade brasileira.

Na maior desfaçatez imaginável, o governo recebeu o relatório com uma gargalhada. Quem semeia vento, colhe tempestade. O maior crime humanitário da história moderna do país não ficará impune. O trauma do massacre sanitário reverberará ao longo dos tempos. Nenhuma vida perdida será esquecida. Ninguém será perdoado. Todas as responsabilidades por ações ou omissões – individuais, institucionais, políticas e de classe – mais dia menos dia serão cobradas.

Contrapoder, 25 de outubro de 2021

Referências

  1. A integra do relatório da CPI encontra-se em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/72c805d3-888b-4228-8682-260175471243
  2. Pela subnotificação estimada de 15 a 20% dos óbitos por Covid-19, provavelmente mais de 700 mil vidas foram perdidas pela pandemia de coronavírus.
  3. https://dasa.com.br/blog/coronavirus/sindemia-covid-19/ e https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)32000-6/fulltext

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